O movimento LGBTQI+ no Brasil tem muita história para contar. Antes mesmo de chegar a essa sigla, foi só de lésbicas e homossexuais, mas foi se reconfigurando com o tempo. Passou pelas ameaças da AIDS, se repensou e configurou estratégias melhores de articulação. Hoje, o movimento carrega marcas das violências e resistências do passado e vai conquistando cada vez mais espaços. Essa é uma reportagem sobre 54 anos de resistência da comunidade LGBTQI+ na sociedade brasileira.
por Emerson Luiz
Os Anos 60 e 70: Ditadura que Mata, Comunidade que Resiste
No ano de 1964 os militares aplicam um golpe de estado e criam um regime autoritário que perduraria na história política do Brasil até o ano de 1985. Os 21 anos da ditadura deixaram marcas indeléveis nas trajetórias e ancestralidades de grupos minoritários, e a narrativa não foi diferente com os grupos LGBTQI+.
As pautas desse movimento, bem como a necessidade de se demarcar sua existência em resposta à hipocrisia, moralismo e higienismo da ditadura inspira-se nas efervescências políticas na sociedade norte-americana. Nos Estados Unidos, a Contracultura materializava as agendas dos movimentos sociais que insurgiam. Ela inspirou os movimentos sociais daqui: negro, feminista e LGBTQI+. Mais a frente, a Teoria Queer seria um movimento intelectual também essencial para esse fortalecimento.
Mas como aqui se desdobrava uma ditadura, a opressão foi iminente.
As perseguições a população LGBTQI+ ocorriam com frequência, visando eliminar indivíduos no método desumanizante tipicamente conhecido desse período. Considerados “perversos” e “sujos”, as práticas de afeto dessa população eram vistas como um atentado ao pudor e causadoras de desordem. A ditadura não possuía lei explicita que criminalizava as práticas LGBTQI+, mas isso não foi um impeditivo para a perpetuação contínua da violência.
Os procedimentos de apagamento do regime estavam ancorados em princípios morais religiosos. Não à toa, a Igreja foi um dos estratos sociais que demonstrou apoio a instauração do golpe. Além disso, sinalizavam também a associação feita pelos militares das práticas homoafetivas com ideologias de esquerda – associando, principalmente, ao comunismo – e com a ideia de subversão.
Um dos casos mais emblemáticos foi a demissão de sete diplomatas no Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) sobre o subterfúgio de que todos eles praticavam o ‘homossexualismo’ em uma incontinência pública escandalosa.
A Operação Sapatão é também um marco do período. Comandada pelo chefe de polícia José Wilson Richetti, a operação ocorrente em novembro de 1980 deteu mulheres lésbicas em seus espaços de socialização sob a justificativa de serem ‘sapatão’ – termo, naquela época, pejorativo, mas hoje ressignificado por essas mulheres. Não somente, o apanhado de pessoas LGBTQI+ em lugares públicos que frequentavam (bares, praças) era comum, atingindo principalmente as travestis. Estas, colocando uma navalha por debaixo da língua, cortavam-se na batida policial para que tivessem de ir para hospitais e não para ‘averiguação’, como era colocado.
Mesmo com a repressão se desdobrando ‘ao lado’ dessas pessoas, as socializações continuaram acontecendo e criaram seus próprios formatos. A população LGBTQI+ passa a se socializar em espaços clandestinos e marginalizados, como bares, boates e clubes.
A arte, nessa época, ganha papel fundamental na constituição de uma linha de frente que responda à ditadura e aos enquadramentos ideológicos por ela proporcionados. Muitos artistas tornaram-se emblemáticos pelas suas irreverências e criticidades em relação à ditadura e, no caso de LGBTQIs, à maneira como se era vista a sexualidade.
Dzi Croquettes foi grupo de artistas teatrais da década de 1970, formado por homens musculosos e másculos que performavam de salto alto, maquiagem e roupas femininas, fazendo em seus espetáculos grandes críticas a ditadura. Na época, foram censurados e se exilaram. Em Paris, reavivaram a peça. Ganharam um documentário em 2009, de 1h38min, revisitando a sua história.
Ney de Souza Pereira, conhecido como Ney Matogrosso, foi um cantor que, à época da Ditadura, chamou atenção pela dialética que sua arte promovia com os tabus e as expectativas sociais de gênero, sendo considerado andrógino – beleza singular que mescla traços do feminino e do masculino. Antes de se afirmar em carreira solo, foi integrante da banda Secos & Molhados durante os anos de 73 e 74.
Trocado por uma mãe na busca desesperadora de um sustento para os seus 17 filhos, João Francisco dos Santos desenvolveu-se mesmo com seu abandono e incorporou o que viria a ser uma figura icônica no universo do transformismo. Negro, pobre e homossexual, João criou Madame Satã, o seu alter ego que, nas noites cariocas, performava canções românticas em lugares – e tempos – de masculinidade e violência. Transitava entre o bem visto e o marginal, e foi detido diversas vezes por situações de conflito físico, nas quais enfrentava homens heterossexuais que a desafiavam e a zombavam. Figura emblemática da Lapa, João/Madame transitava entre o jeito malandro e o jeito afeminado, combinando em uma única personalidade diversas expectativas de gênero e confundindo olhares externos.
Mesmo com processos de censura, uma imprensa homossexual começa a dar os ares ainda na ditadura civil-militar. Essa imprensa, inclusive, já havia se manifestado antes do início do regime: em 61, surge o jornal Snob por Agildo Guimarães, e entre 62 e 64 cria-se a Associação de Imprensa Gay; ambos declinam com o regime. A mídia homossexual recria sua história e conquista sua fama com o Lampião da Esquina, na década de 70, que logo encurta o nome para Lampião. O jornal aborda cinema, teatro, traz críticas e volta o olhar para crimes e atentados contra a população LGBTQI+, descaracterizando-se na sua trajetória, quando passa a produzir conteúdo de conotação sexual. Ainda assim, sua postura denunciatória foi imprescindível para a discussão da sexualidade no Brasil.
Na época, programas de televisão chegaram a ser censurados sendo acusados de apologia a práticas homossexuais. A pornografia, elemento que passou a ser explorado até mesmo pelos jornais de conteúdo LGBTQI+ junto ao jornalismo combativo e denunciatório, também passou a ser monitorada com mais intensidade. As pornografias que incitavam o comportamento homossexual, como esperado, chegavam a ser incineradas.
Ainda assim, a postura de articulação continua seguindo em frente. Em 1978, surgem o Somos, um grupo de homossexuais, e o Movimento Homossexual Brasileiro. Em 1979 ocorre um primeiro encontro de grupos atuantes no movimento LGBTQI+, do qual surge como pauta política a necessidade de incorporar o respeito à opção sexual (etimologia utilizada na época) na Constituição, bem como a desassociação das práticas homoafetivas com a percepção de doença.
Elizabeth Carneiro, doutora em História pela Universidade de Brasília, professora de História no INHIS/UFU, pesquisadora e atuante no Núcleo de Estudos de Gênero UFU, ressalta a trajetória de luta do movimento. Elizabeth diz que “a história da sigla LGBTQI+, evidencia, portanto, as lutas políticas de pessoas que se reúnem porque sofrem discriminações, exclusões, enfrentam uma violência histórica e cotidiana que pode se dar nos lares, nas ruas, nas instituições, cujos efeitos se materializam não apenas no campo simbólico, na cultura, mas em seus corpos físicos”.
A demanda pela desvinculação da homoafetividade com a ideia de doença leva a resultados evidenciáveis no dia 17 de junho de 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) retira oficialmente a condição afetiva da lista de doenças. Treze anos antes, a Organização havia cometido o equívoco de considerar homossexualidade na categoria de doença mental. O equívoco não foi só dela: diversos estudos, feitos no século XIX e início da metade do século XX, objetivaram confirmar a homossexualidade enquanto distúrbio mental.
Os anos 80: O Surto da AIDS e o Medo da Morte
Os anos 80 são marcados pela epidemia da AIDS, que inicialmente atinge, em sua maioria, a população homossexual. O surto passa a ser conhecido, por esse fator, como a “peste gay” ou “câncer gay”. O Brasil em 86 cria o Ministério Para Controle da AIDS, mas o número de mortes continuou a ser alto. A expectativa de vida para uma pessoa que contraiu o vírus naquela época era de 1 ano a 1 ano e 3 meses, em média. Da pauta de liberação sexual que os movimentos norte-americanos incitavam, o movimento LGBTQI+ brasileiro passou a dar enfoque à solução e combate do vírus que se alastrava pela comunidade.
E nesse momento de revisão das pautas da luta, as travestis são responsáveis pela criação de grandes centros de assistência para cuidados com homossexuais soropositivos. Brenda Lee é uma das figuras mais bem lembradas nesse sentido: pernambucana, mudou-se para São Paulo, comprou uma casa e, desde o início, abrigou pessoas desalojadas, especialmente travestis e transexuais como ela. Com a ‘peste gay’, sua casa (que ficou conhecida como ‘Palácio das Princesas’) ficou cheia de travestis e de homossexuais diagnosticados com os vírus. Muitas residentes anteriores saíram da casa com medo do contágio, mas Brenda continuou e oferecia até a própria cama para enfermos, se precisasse. Já as mulheres lésbicas representavam a força de seus amigos homossexuais que não mais a tinham. Para esses homens, a epidemia da AIDS representava uma faca de dois gumes e um constante sinal de alerta: ao mesmo tempo que sofriam com a perda iminente de amigos e conhecidos, eles mesmos estariam sujeitos a morte. Sendo assim, fizeram-se presentes em momentos importantes para dar um grande apoio.
Os Anos 90: Expansão do Movimento e Articulação Política
O movimento, inicialmente, tinha como principais enfoques as lésbicas e os homossexuais.
Mas nos anos 90 o cenário começa a mudar e outros grupos da sigla passam a exigir reconhecimento, fazendo com que a amplitude da existência LGBTQI+ ecoe mais significativamente dentro das agendas de luta. Nesse sentido, nomes de eventos, grupos e a própria sigla começam a ser repensados. À exemplo, o evento anual de Encontro Brasileiro de Homossexuais, no ano de 93 passa a ser chamado de Encontro Brasileiro de Homossexuais e Lésbicas. Dois anos depois, as travestis reivindicam o mesmo espaço dentro da sigla, e o T é incorporado.
Os anos 90 também oferecem o palco para a expansão e articulação de diversas associações relacionadas a luta e assistência para pessoas LGBT. Surge, em 95, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis. Em 96, uma marcha em protesto com cerca de 500 pessoas que acontece na Praça Roosevelt, na cidade São Paulo, dá margem para o planejamento da primeira parada LGBT do país, que vem e 97 e que criou o que é agora a maior parada de orgulho LGBTQI+ reconhecida mundialmente.
Os anos 2000: Conquistas de Direitos e Representatividade
Os anos 2000 caracterizam um momento da história importante, no qual os espaços políticos passam a ser ocupados e se tornam espaços importantes de disputas de narrativa, em busca do reconhecimento efetivo das pautas LGBTQI+. Nesse sentido, muitas leis garantindo direitos surgem.
O casamento homoafetivo foi considerado em 2011 pelo Supremo Tribunal Eleitoral enquanto entidade familiar estável. O projeto de lei que discorre sobre isso é PL de número 5120/2013. O Conselho Nacional de Justiça assegurou também, em 2013, uma preliminar que proíbe cartórios país a fora de se recusarem a celebração de uniões homoafetivas.
Apesar de a primeira adoção feita por um casal homoafetivo ter sido realizada no ano de 2005, o Conselho Nacional de Justiça só reconhece documentalmente a adoção no ano de 2008, quando muda a configuração das certidões de nascimento de “pai e mãe” para “filiação”, abrangendo também a adoção feita pelos casais LGBTQI+.
A possibilidade de mudança do nome social para que seja compatível com a identidade de gênero veio tarde. Ela foi aprovada no ano de 2017, e antes desse projeto o nome social só poderia ser mudado sob a condição de realização da redesignação sexual. A demanda de mudança sem a designação, entretanto, é uma pauta que acompanha a comunidade travesti e transexual da sigla há tempos. Os processos de redesignação são processos arriscados, demorados e, acima de tudo, caros. Muitas travestis e transexuais, nesse sentido, não enxergam a possibilidade de fazer a redesignação de imediato. Pedro Henrique, 21 anos e estudante de Zootecnia da Universidade Federal de Uberlândia e homem transexual, fala sobre a difícil realidade do corpo transexual e do peso da cirurgia em sua vida. “A cirurgia é um sonho tão grande, que só a possibilidade de ela tá tão próxima, eu não consigo ver mais nada. Tipo, parece que.. Quando eu mudei os documentos, quando eu peguei a certidão de nascimento, foi como se eu tivesse nascido. A partir daquele momento, eu passei realmente a existir. E a cirurgia é como se eu fosse nascer de novo, só que dessa vez num corpo que eu consiga olhar, que eu consiga aceitar”, afirma.
Em abril de 2016, foi reconhecido pelo Conselho Nacional de Justiça a inclusão de casais homoafetivos no registro de filhos gerados pela reprodução assistida, estando os cartórios proibidos de não realizarem os devidos registros. A reprodução assistida ocorre de três formas: artificialmente (óvulo fecundado dentro do corpo feminino), in vitro (fecundado fora) e barriga de aluguel (‘empréstimo’ do útero feminino para desenvolvimento da gestação).
Para além das leis, a presença LGBTQI+ nos espaços jurídicos e políticos está sendo garantida na forma de representantes. Os antecessores mais conhecidos são os deputados Clodovil Hernandez e Jean Willys, este segundo eleito por defender as causas do movimento. As eleições de 2018 foram também significativas nesse sentido: Duda Salabert foi candidata à senadora, sendo a única mulher trans competindo nesse âmbito. Apesar da não vitória, houve uma conquista no Senado tão alegre quanto: Fábio Contarato, professor de Direito e capixaba, estreia no Senado como o primeiro LGBTQI+ a ser eleito nesse espaço. No estado de São Paulo, foram eleitas Erika Hilton, deputada transexual e Isa Penna, mulher bissexual e feminista.
O registro de filhos ainda passa por algumas complicações. Também no ano de 2016 o Conselho Nacional de Justiça reconheceu o registro parental de filhos de casais homoafetivos em caso de reprodução assistida, sob a condição exclusiva de que ambos os pais/mães compareçam ao cartório. No caso de adoção, o registro ainda demanda permissão da Justiça e, infelizmente, trata-se de um direito incerto e que pode ser negado.
A violência contra a população é um assunto bastante comentados e uma das reivindicações mais em alta. A LGBTfobia, que designa os crimes de violência contra os LGBTQI+, possui atualmente quatro projetos de lei que circulam. As leis são:
PL 7582/2014: estabelece, dentre os crimes de intolerância, a violência psicológica e inclui a LGBTfobia, e prevê atuações sistemáticas das várias instâncias no combate ao preconceito.
PLS 291/2015: projeto que busca alterar o Código Penal, prevendo incluir no crime de injúria discriminações que estejam ligadas a raça, cor, etnia, religião, origem, gênero, idade ou deficiência.
PL 7292/2017: prevê LGBTcídio como qualificador da LGBTfobia e o considera crime hediondo, isto é, aqueles que exigem medidas punitivas estatais mais graves.
PL 7702/2017: intitulada Lei Dandara, em homenagem a travesti recifense morta e espancada à céu aberto no ano de 2017, é incluída na Lei Caó – que determina o crime de racismo –, tipificando o crime de LGBTfobia.
Outros espaços também foram e estão sendo ocupados. De uns anos para cá, a representatividade em produções televisivas, filmes e séries tem sido demandada e atendida. Os beijos gays compuseram algumas das novelas de TV aberta, conhecida pelo estigma de ser consumida por uma população brasileira humilde e preconceituosa. Artistas e digital influencers tem ganhado as paradas musicais, o Youtube e as capas de revista: Pabllo Vittar, drag queen renomada e brasileira, é hoje a drag queen mais seguida no mundo. Linn da Quebrada, artista travesti, vem entoando os discursos da resistência travesti e ganhou as telas europeias. Louie Ponto e Spartakus Santiago ganham as telas do Youtube e de outras mídias pautando as vivências e complexidades da existência LGBT.
Como na trajetória, as formas de resistência vão se reconfigurando com o tempo, mas sempre sob a mesma premissa de colocar em evidência estas existências, da ditadura até aqui. Para Iusley da Mata, produtora de moda da cidade de Uberlândia, as reivindicações colocadas na luta LGBTQI+ continuam partindo dos mesmos princípios. “Eu acredito que nossa luta é a mesma, por respeito e por cidadania, por inclusão sempre, por visibilidade, não apenas ser mais uma pessoa, mas sermos pessoas no mundo, sermos identificados como pessoas e não sermos discriminados pela orientação sexual, pelos nossos jeitos, etc”, Iusley coloca.
Tal qual os espaços midiáticos, a moda também se caracteriza como um espaço de luta e construção de nossas pautas. Na visão de Iusley, “a moda é um ato político, então é a forma como você se veste, a forma como você se posiciona na sociedade, é você se comunicar sem abrir a sua boca. Então você vê um homem vestido de mulher, é um ato político já. Qualquer forma, um gay com cropped já é um ato de resistência. Então a moda vem como um meio de se comunicar”.
O movimento LGBTQI+ foi e é um movimento preenchido por conquistas e por questionamentos. Ao longo de toda a sua história, os LGBTQI+ contornaram as normas heteronormativas da sociedade em busca de autonomia e de controle sobre as suas próprias narrativas. O percurso é longo e as conquistas são muitas. Como sempre fizemos, que continuemos aqui reinventando a resistência.
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