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A cantora Linn da Quebrada se olhou no espelho e não gostou do que viu. Leu Clarice, e se pôs em dúvida. Se afirmou: incógnita. Vive enquanto Linn da Quebrada agora, mas não se inibiu e sabe que pode ser outras coisas. Perdeu terceiras pernas, desafiou o Estado, proclamou sua travestilidade - e se fez Linn. O texto a seguir é um perfil da cantora.

por Emerson Luiz

"Nós fomos aleijados da humanidade. O que eu acho mais cruel e interessante é que até agora, o que talvez seja interessante pra quem tiver vendo, seja justamente 'como eu consegui me manter viva' e 'como eu consegui ocupar esses espaços sendo quem eu sou?' É quase meio que um freak show né, de certa forma. Logo eu, que não era nem humana. Que não sou nem humana. Passo a ser um ícone, mas continuo não sendo humana, continuo não sendo digna de amor e de outros sentimentos e afetos que estão destinados apenas para seres humanos. Eu ainda não sou; talvez eu nunca seja, e nem sei se eu quero ser"

- Linn da Quebrada, em entrevista ao Canal Atraves, publicada em 03 de agosto de 2018.



Linn no documentário "Meu Corpo é Político", perfomando em um clube noturno no início do que seria uma carreira estrondosa. Reprodução: https://www.youtube.com/watch?v=U36fLTKyXzw

Linn da Quebrada é jovem, artista, e se define como "transvyada preta e periférica", e também como uma "terrorista de gênero". Mas antes de chegar a essas nomenclaturas, teve muita história.

Seu nome real é Linna Pereira. Nasceu em 18 de janeiro de 1991, na cidade caótica de São Paulo e tão diversa quanto a própria cantora. Cresceu mesmo em Votuporanga, no interior de São Paulo estado, porque tinha uma mãe que era trabalhadora doméstica. Alagoana, a mãe trabalha na profissão até os dias de hoje.

Antes de se descobrir Linn, a cantora-performer-terrorista havia sido testemunha de Jeová. Com 17 anos, montou-se no que achou ser só uma perfomance drag queen. Sua igreja, quando ciente do acontecimento, a expulsou. Quando assumiu uma identidade travesti, foi desassociada, como conta.


Porque “uma maçã podre deixa as outras contaminada”

Eu tinha tudo pra dar certo e dei até o cu fazer bico

Hoje, meu corpo, minhas regras,

Meus roteiros, minhas pregas

Sou eu mesma quem fabrico”

- A LENDA; Pajubá


Foi crescendo dentro dos universos da dança, da música e do teatro quando se mudou de vez para São Paulo para estudar. Antes de ser Linn, teve um coletivo junto a amigos para explorar performances em público. Deram o nome de Coletive Friccional, o que nas suas palavras trazia “fricção entre realidade e ficção”. Leu Clarice Lispector e se encantou pela narrativa que viria a ser aquela que mudaria – e questionaria – a sua vida. Até os dias de hoje, A Paixão Segundo G.H. acompanha a terrorista de gênero. Na história, uma mulher de vida média sozinha em seu apartamento passa por uma epifania, não premeditada, aterrorizante e aleatória, que a faz duvidar de si mesma. G.H., essa mulher, diz que era como se tivesse perdido uma terceira perna. Essa é a metáfora do livro que Linn da Quebrada repete nas suas entrevistas toda vez que fala de si mesma e do seu trabalho.


"Eu acordei agora, dormi... acordei agora, agora tô vendo que é você memo. Cê é louca memo né, Júnior? Mas tudo bem, faz o que cê gosta. Mas se cuida tá!? Tanto na sua alimentação quanto na sua saúde. Beijo, te amo." As palavras da mãe de Linn na ligação que ecoa ao fundo das cenas. Reprodução: http://www.clandestino.art.br/linn-da-quebrada-blasfemea-mulher/

Linna perdeu a sua terceira perna. Foi desassociada, e desrespeitou o Estado e a professora. Perdeu a terceira perna e perdeu-se. Permitiu-se questionar. Do questionamento e do desvínculo com todo o anterior – e com o que ela se dizia ser -, nasceu Linn da Quebrada. Hoje, enquadrar-se num feminino ou num masculino exclusivamente é uma espécie de restrição que não mais quer. Essa foi a terceira perna perdida pela artista: as barreiras de feminino e masculino que ela derrubou para ser mais. Ser algo além, outras coisas.

Em 2016, vem à tona o single “Enviadescer”, o seu primeiro sucesso, que atualmente acumula no Youtube 666.726 visualizações. As palavras discursivamente bem interpretadas, a mensagem de raiva e o ritmo acalorado, festivo – e também marginalizado – do funk colocaram Linn da Quebrada na rota de artistas.


“Ei, psiu, você aí macho discreto

Eu não tô interessada no seu grande pau ereto

Eu gosto mesmo é das bixa

Das que são afeminada

Das que mostram muita pele

Rebolam, sai maquiada..”

- ENVIADESCER


Na época em que materializava a sua carreira, Linn participava das gravações de “Meu Corpo É Político”, documentário oficialmente lançado em 2017 no qual Linn e outros três personagens desbravam e travam lutas pela sua identidade de gênero na cidade de São Paulo, cada qual a sua maneira. No filme, a verdade das canções: Linn percorrendo as ruas de sua periferia e gravando o que viria a ser um dos seus outros hinos.

O lado cinematográfico da artista passou também a ficar mais evidente na produção audiovisual “BlasFêmea”, compartilhada na sua conta do Youtube em 15 de abril de 2017. Pela produção e pelo próprio jogo de linguagem que constitui o título da obra, Linn ressignifica o feminino na sua perspectiva de travesti. Sua intenção não é o de tomar a bandeira “mulher” para si, mas questionar o desprezo e o vilipendiamento do feminino, independentemente do corpo no qual ele se expressa. “BlasFêmea” traz também a narrativa infelizmente comum entre travestis: em uma das cenas do videoclipe, Linn sozinha nas ruas, à noite. Roupa curta, tamanco. A prostituição a espera. No fundo, a ligação de sua mãe, que a chama de “Júnior” ainda que com as mudanças. “Eu te amo, do jeito que você é”, a mãe diz.


LOGO DEPOIS..

“Bixa estranha, louca preta da favela, quando ela passa todos riem da cara dela. Mas, se liga macho, presta muita atenção, senta e observa a sua destruição”. Bixa Preta foi uma segunda canção conhecida na trajetória artística de Linn, no qual ela demarca o locus social do corpo negro e LGBTQI+, colocando-o enquanto corpo de luta e conquista. As duas grandes canções demarcariam o que viria a ser “Pajubá”, o seu primeiro álbum.

Lançado em 06 de outubro de 2017, o nome do álbum refere-se ao código linguístico muito comum nos meios LGBTQI+, especialmente entre gays e travestis. A cantora tem muitas referências de artistas cisgêneros: Sandy & Júnior perspassou a sua infância, ao lado de Caetano Veloso, Gal Costa, Dzi Croquetes e Claudia Wonder. A cantora, entretanto, protagoniza uma nova leva de artistas, inclusive muito diferente de suas referências: na cena musical brasileira contemporânea que são como ela, a cantora Linniker e a banda As Bahias e a Cozinha Mineira, por exemplo (com a qual, inclusive, compartilha das referências de Gal Costa). Junto com essas artistas, Linn faz esse novo cenário - e se alimenta dele. Por isso, ressalta que consome os produtos de agora, e que sua música é feita para pessoas que são como ela.


Lupita Amorim, 20 anos. Reprodução: acervo pessoal de Lupita (Foto: Dizão Leão/ Maquiagem: Leydianne Andrade)

Para Lupita Amorim, travesti e estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), representante do estudante LGBT NEGRO no Conselho de Política de Ações Afirmativas e integrante do Coletivo Negro, ambos da universidade, o trabalho de Linn é antes de tudo, um trabalho que diz respeito a suas próprias vivências. Em suas palavras:











" 'meu trabalho é trânsito, movimento, ele não é fixo, nem estático, ele é esse diálogo com todos. Eu tenho aprendido a lidar com esse jogo e a entender que posição eu estou nesse tabuleiro, com as pessoas que estão comigo, onde estão posicionadas e quais são as consequências e os efeitos da nossa ação.' Essa é a fala dela que mais me emociona e me inspira! Me dá forças pra seguir. Ela é humana, como eu. Estamos diariamente lutando pela garantia da nossa existência, juntamente com as nossas! Se um dia eu to triste, eu ouço "Sereia A" do album Pajubá que ela fez com a participação de outra travesti que também é muito importante pra mim, Linniker! Linn pra mim representa resistência, porém, mais que isso, é alguém que eu me enxergo! Me vejo nela! Em 10 de fevereiro de 2017 tive o prazer de conhecê-la pessoalmente e eu nem sabia que era trans! Ter visto ela certamente foi fundamental no meu processo de compreender quem eu sou! LINN ME DEU VIDA! Quando eu achava que nada mais era possível. Acreditar que juntas podemos destruir o patriarcado, mas, para além disso, construir rede de afetos, aprender amar as nossas e os nossos. Eu sou parte de Linn, sou semente de Linn, e quero continuar semeando sua palavra por onde eu for!"

O álbum Pajubá ganhou toda uma narrativa audiovisual, o que coloca Linn na posição de primeira artista travesti no Brasil a construir um álbum audiovisual. Esse ano ganhou um documentário próprio, Bixa Travesty, lançado em 18 de fevereiro de 2018. Ganhou um prêmio do Teddy Award, premiação voltada para obras do público LGBTQI+ apresentadas no Festival de Cinema de Berlim.

Com a sua coragem, seu manifesto e sua fama, Linn já passou por vários canais de comunicação. Passou pelo canal da Regina Volpato, renomada jornalista que hoje faz vídeos de entrevistas para a plataforma do Youtube; foi ao programa Estação Plural, televisionado pela TV Cultura e importante em elencar pautas LGBTQI+ e com apresentadores da própria bandeira: Mel Gonçalves e Ellen Oléria, cantoras; e Fernando Oliveira. Foi a TRIP TV, Universa e, mais recentemente, compartilhou suas visões com o Nexo Jornal, Atraves, e com a artista Laerte Coutinho, no seu quadro “Transando com Laerte” sediado no Canal Brasil.


Foto postada pela artista em sua conta do Twitter no dia 01 de novembro de 2018.

Tanto quanto em suas músicas, Linn dá um show de sabedoria e faz jus ao corpo que construiu como a sua resistência. Nas entrevistas, fala sobre o seu corpo e sobre corpos, sobre a possibilidade que se concedeu em explorar a própria imagem, ainda sendo Linn, Linna, Linn da Quebrada, Linda Quebrada. Arquiteta bem o seu discurso, que atravessam a mente como navalha. Ironiza, se diz “não-humana”. Demarcou o seu lugar enquanto terrorista de gênero, enquanto bixa preta transvyada periférica. Agora segue quebrando terceiras pernas mundo afora.





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