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A Escala de Kinsey

Alfred Kinsey durante entrevista.

O percursor dos estudos da sexualidade, mesmo possuindo uma pesquisa datada de quase 100 anos atrás ainda consegue contribuir muito com os estudos atuais e seus avanços. A sua Escala e até mesmo seus estudos com métodos e fontes peculiares conseguem até hoje inspirar questionamentos e fazer surgirem novos ramos de pesquisas.

por Anna Carla Di Nápoli

No início do século 20, a sociedade estadunidense ainda se baseava em conceitos puritanos. Pessoas eram internadas com diagnósticos ridículos como o de masturbação compulsiva, e eram submetidas a "tratamentos" brutais como a castração. A liberdade sexual estava longe de ser algo aceito pela população e seus costumes.

Com a cabeça fechada da sociedade, muitos comportamentos hoje considerados mais comuns eram considerados impuros e até profanos. A homossexualidade era vista com maus olhos, assim como a transexualidade, sendo os que se encaixavam nesse estilo de vida tratados como profanos.

Filho de um fanático religioso da Igreja Metodista que condenava o álcool, o fumo, o sexo e até as danças de salão, Alfred Charles Kinsey sofria uma repressão muito grande dentro de casa, sendo impedido de executar atividades que seus amigos podiam fazer normalmente na infância e adolescência.

No início de sua vida afetiva, no começo da adolescência, Kinsey relata ter percebido que era atraído tanto por homens quanto por mulheres, mas demorou muito a assumir tal sexualidade. Com a influência do pai, Alfred se casou virgem aos 25 anos, descobrindo então que o sexo, para ele, não era nada prazeroso. Com um pênis muito grande, a experiência sexual entre ele e sua esposa era terrível, sendo a penetração quase impossível devido a dores excruciantes,

Como naquela época sexo não era um assunto discutido abertamente, Kinsey procurou ajuda médica, porém essa se mostrou inútil e não chegou nem perto de resolver seu problema. Como consequência, o até então biólogo decidiu que sexo deveria ser um tópico abordado além das quatro paredes de um quarto, começando então a estuda-lo.

No início, o pesquisador era guiado somente por interesses particulares, visando entender o por quê de seus desafios com o sexo. Sua excentricidade nos fetiches também era alvo de suas pesquisas, assim, Alfred Kinsey dedicou mais de 30 anos de sua vida para explicar que, de quatro ou entre quatro paredes, não existe normal e anormal.

Graduado em biologia, ele lecionou zoologia e entomologia - estudo dos insetos e sua relação com o meio - por muito tempo. Era um professor muito bom e conceituado, o que o levou a ser chamado para participar do corpo docente da Universidade de Indiana. Lá, ele começou a ministrar aulas de no curso de Higiene, revolucionando a didática e contradizendo todos os métodos já aplicados na disciplina. Kinsey exibia fotos de genitálias e órgãos reprodutores masculinos e femininos, deixando de lado as metáforas e as explicações exclusivamente teóricas.

Com o feedback positivo dos alunos, Kinsey começou a ousar mais em seus métodos, chegando a desenvolver uma discussão aberta ao público com o tema “ignorância difundida da estrutura e da fisiologia sexual”. Durante o encontro ele chegou a promover um tópico bem conhecido por ele, o sexo pós matrimonial, afirmando que esse é psicologicamente prejudicial e enfatizando os problemas que podem surgir a partir dessa prática.

Sua metodologia visionária o fez ganhar financiamento de pesquisa da Fundação Rockefeller, o que o permitiu se dedicar completamente ao seus estudos do comportamento sexual humano. Com o dinheiro da bolsa, Alfred conseguiu expandir sua área de estudo, contratando três colaboradores, que o ajudaram durante muito tempo.

Os modos de pesquisa de Kinsey eram tão pra frente quanto seus métodos de ensinar. Assim, ele utilizava muito mais do que a teoria e entrevistas para basear seus estudos, ele também observava atividades sexuais de outras pessoas, chegando até a participar.

Inspirado por suas pesquisas com insetos e suas diversidades - Alfred chegou a catalogar mais de 1 milhão exemplares de vespas do do gênero Cynips -, sua pesquisa era voltada para a diversidade sexual. “Meu trabalho com insetos salientou as variações individuais dentro dos grupos. Procedo da mesma maneira no estudo de seres humanos”, defendia Kinsey.

Para o sexólogo, o comportamento de nenhuma espécie pode ser dividido em categorias rígidas, inclusive o do ser humano. O “pensamento binário”, termo utilizado por ele para classificar o pensamento ultrapassado de que só existem homossexuais e heterossexuais era um dos maiores estigmas que ele pretendia derrubar.

Ele e seus companheiros de estudo viajavam toda a extensão dos Estados Unidos da América, chegando a entrevistar mais de 18 mil voluntários ao longo do projeto. Entretanto, as entrevistas eram só uma parte pequena, porém importante, do estudo. A pesquisa abrangia a observação do ato sexual, visando analisar as reações humanas durante a masturbação e a penetração anal e vaginal.

Kinsey filmava as relações, que normalmente aconteciam no sótão de sua casa. As primeiras experiências foram feitas com seus colaboradores e suas esposas e a troca de casais e as relações homossexuais eram pré requisitos para o ato. Ao passar do tempo, o estudo começou a ter um maior número de voluntários, recrutando prostitutas e garotos de programa.

A partir dessa pesquisa nasceu em 1948 o primeiro livro de Kinsey como sexólogo, o “Sexual Behaviour of Human Male” (Comportamento Sexual do Homem, se traduzido para o português). A obra nunca foi publicada no Brasil, mas nos Estados Unidos da América ela foi um sucesso, em dois meses mais de 200 mil exemplares evaporaram das prateleiras ao redor do país, transformando Alfred Kinsey em uma celebridade.

Entretanto, várias críticas surgiram do sucesso da pesquisa. Na época, uma antropóloga muito famosa até acusou Kinsey de um puritanismo disfarçado, uma vez que em nenhum momento no decorrer do livro ele insinuou que o sexo poderia ser uma prática prazeirosa. Outro estudioso da ciência humana apontava que a parcela da sociedade estudada pelo pesquisador era irrelevante e não representava a sociedade norte americana, uma vez que os voluntários da pesquisa eram majoritariamente garotos de programa, prostitutas e presidiários acusados de atentado ao pudor e pedofilia.

Porém, a maior bola fora de Alfred Kinsey em seu livro foi a parte em que ele disserta sobre o orgasmo infantil. Referido por muitos como “o maior propagandista de pedofilia na história da ciência”, o pesquisador mantinha contato frequente com homens pedófilos, sendo acusado de ser conivente com a prática. “Sr. X” era uma das maiores fontes dos dados apresentados no livro sobre o abuso de menores, segundo a obra ele havia mantido relações sexuais com mais de 600 pré-adolescentes.

As pesquisas não pararam por aí e como resultado da sequência de experiências surgiu o segundo livro, "Sexual Behaviour of Human Female” (Comportamento Sexual da Mulher quando traduzido). Esse , publicado em 1953 também não teve uma edição brasileira e, diferente de seu antecessor, não teve uma recepção tão calorosa do público.

Prostitutas e presidiárias ganharam um grande espaço nas páginas da obra, enquanto os depoimentos de mais de 900 mulheres negras do sul dos Estados Unidos da América foram simplesmente descartados. Assim, o segundo resultado das pesquisas de Kinsey foi bombardeado com críticas que afirmavam que a seleção de fontes dava visibilidade a profanidade e iam contra os ideais puritanos.

A falta de popularidade do livro e as árduas críticas às pesquisas de Alfred fizeram a Fundação Rockefeller desacreditar do estudo e retirar o financiamento.

Pouco depois da publicação de sua segunda obra como sexólogo, Kinsey morreu vítima de complicações cardíacas. Sua morte não foi exatamente uma surpresa, uma vez que o pesquisador já tinha uma idade avançada e que ele utilizava do próprio corpo para fazer experiências masoquistas com o intuito de testar os limites humanos da dor - ele inseria objetos em sua própria uretra e fez a circuncisão em si mesmo sem anestesia.

Mesmo com todos esses escândalos e críticas Kinsey mudou a história da ciência sobre sexo. Ele foi o pioneiro da sexologia nos Estados Unidos da América e sua pesquisa é citada como o "abre alas” pra uma exploração mais profunda na sexualidade entre os sexólogos e a sociedade. Ele também começou a pavimentar os estudos sobre a libertação sexual da mulher, discorrendo que o orgasmo feminino experimentado na vagina é superior aos orgasmos experimentados no clítoris - o que é estudado até hoje.

Uma das contribuições que mais chamam a atenção até hoje é a chamada Escala de Kinsey.

Desenvolvendo a contestação do “pensamento binário”, Alfred chegou a criar uma escala que abrange um espectro da sexualidade. Acreditando que não existem elementos e fenômenos que possuem uma definição clara e definitiva, Kinsey aplicou a mesma linha de raciocínio na sexualidade. Assim, ele criou uma espécie de régua, que vai de 0 a 6, para medir os níveis de heterossexualidade ou de homossexualidade de alguém.

O pai da revolução sexual, em seus exaustivos estudos sobre o comportamento dos indivíduos nesse âmbito na vida, percebeu que as pessoas praticam uma ampla variedade de comportamentos sexuais ao longo da vida, e que as vezes, ou muitas vezes, as pessoas desviam do comportamento típico da orientação sexual professada anteriormente por eles.

Então, na década de 40, ele criou a agora chamada Escala de Kinsey, baseada no desejo das pessoas, tentando representar o comportamento delas teoricamente.

A régua é basicamente composta de 8 níveis. Sendo os níveis mais baixos destinados às pessoas com um comportamento majoritariamente heterossexual, e os mais altos para aqueles que se identificam sexualmente com o mesmo sexo.

Assim, o número 0 é destinado às pessoas exclusivamente heterossexuais, o 1 para os héteros que ocasionalmente possuem um comportamento homossexual, o 2 para os que ficam com pessoas do mesmo sexo mais do que ocasionalmente. Já o 3 é destinado para as pessoas que possuem o mesmo número de experiências com pessoas do mesmo sexo e do oposto, seguido do número 4, que já caracteriza pessoas majoritariamente homossexuais, mas que mais do que algumas vezes se vê com pessoas do sexo oposto. O quinto nível é ocupado por aqueles que possuem um comportamento mais homo, mas que às vezes se veem em meio a comportamentos heteros. O 6 é unicamente destinado aos completamente homossexuais.

Posteriormente, o nível X foi adicionado, uma vez que Kinsey e sua equipe descobriram que a assexualidade era mais comum do que se imaginava, acumulando milhares de adeptos.


Ilustração didática da Escala de Kinsey.

Resumindo:

0 – exclusivamente heterossexual

1 – predominantemente heterossexual, apenas ocasionalmente homossexual

2 – predominantemente heterossexual, mas mais do que ocasionalmente homossexual

3 – Igualmente heterossexual e homossexual

4 – Predominantemente homossexual, mas mais do que ocasionalmente heterossexual

5 – Predominantemente homossexual, apenas ocasionalmente heterossexual

6 – Exclusivamente homossexual

X- Assexual

Durante suas pesquisas, foi descoberto que a maioria das pessoas fica nas categorias entre os extremos, ou seja, de 1 a 5. Assim, foi concluído por Alfred Kinsey e sua equipe que a bissexualidade não é estática e única, e sim contínua, sendo mais uma norma do que uma raridade, uma vez que existem mais níveis de bissexualidade do que de heterossexualidade e homossexualidade.

Em sua teoria, Kinsey também disserta que não existe zero absoluto assim como não existe 6 absoluto. Ele afirma que as pessoas transitam entre os níveis durante a vida e que mesmo sem ter praticado atos homossexuais ou heterossexuais, em sua mente os indivíduos sempre terão pensamentos distintos de sua orientação sexual assumida.

Dentre os alunos da décima turma do jornalismo, são poucos os que se assumem nos extremos - salvo 4 homens e uma mulher que se afirmam exclusivamente heterossexuais. Mas levando em consideração que os entrevistados são jovens e já nasceram quando a homossexualidade e a bissexualidade já eram mais aceitos e discutidos, temos uma parcela da sociedade com uma cabeça mais aberta e que não tem medo de explorar.

Já na maioria dos grupos de família é praticamente um pecado perguntar sobre sexualidade, quem dirá perguntar o nível. Mas ousei perguntar no grupo e obtive respostas como “0, é claro” e “nessa família não tem ninguém acima de 0”. Mal sabem eles que os que se abstiveram tem um nível bem mais alto que 1. Mas isso eu conto, ou deixo pra eles se afogarem na ignorância?

Existem vários grupos que foram excluídos da análise da Escala de Kinsey, uma vez que ela só analisa dois extremos - homossexual e heterossexual - e os que se encontram entre eles - os diferentes níveis de bissexualismo. Mas sabemos que a sexualidade não é algo com somente dois referenciais, nem três - se também contarmos os assexuados -, ela é bem mais ampla, com vários outros extremos e variantes. Assim, muitos excluem a Escala como método de análise, mas muitos

A régua é comumente mal interpretada, então é sempre importante reforçar que ela funciona mais como um guia do que como uma regra. A escala foi criada para que a complexidade da sexualidade fosse entendida e para que a possibilidade de se deslocar entre o desejo hétero e homo durante o período da vida fosse destacado.

Entretanto, hoje a escala é utilizada para esclarecer a identidade sexual das pessoas, e usada como base em testes online para determinar a sua “verdadeira orientação sexual”, o que, quando relacionado a profunda pesquisa de Kinsey, é uma bobagem. Ela não foi projetada para fins tão rasos.

É puramente um método de auto avaliação com base na experiência individual. Não é fixa, logo a classificação que você escolher pode mudar ao longo do tempo. Assim, a escala é utilizada para garantir a fluidez da sexualidade, desmistificando seu caráter estático atribuído por muitos.

Assim como os outros estudos de Kinsey, a régua era um conceito muito avançado na época, sofrendo ataques de grupos conservadores e religiosos - incluindo o pai do sexólogo. Até hoje seu estudo é utilizado pelos pesquisadores da área, desmistificando e entendendo mais sobre os caminhos da sexualidade.

A Escala de Kinsey é um assunto tão recorrente que quase um século depois do nascimento de Alfred foi lançado um filme chamado “Kinsey - Vamos Falar de Sexo”. O filme é mais uma biografia do pesquisador, não possuindo tantos detalhes de suas pesquisas. Mas apesar de sua grande repercussão quando foi lançado, não teve tão boas críticas, possuindo apenas 3 estrelas no famoso site AdoroCinema.

Também assunto de uma séria, a Escala de Kinsey é a precursora de “Masters of Sex” (Mestres do Sexo em tradução livre). A série conta sobre dois médicos que revolucionam os estudos sobre a sexualidade, utilizando em seu primeiro episódio teorias de Alfred Kinsey para resolver casos de pacientes.

Hoje, a Escala de Kinsey é amplamente utilizada, sendo ainda muito conhecida nos âmbitos profissionais e sociais. É muito comum que a régua seja utilizada em processos seletivos de empresas, em grupos de amigos e em conversas em mesas de bar.

A AIESEC Uberlândia utiliza de diversos quesitos para admitir um novo membro, e dentre os questionários e os testes enviados para análise, os candidatos tem que preencher qual o nível que ocupa na régua.

Não são todas as pessoas que concordam com esse tipo de pergunta em processos seletivos, afirmando que a sexualidade da pessoa que se aplica para o cargo não deve ser um elemento de grande influência na escolha de quem deve ou não preencher a vaga. "O que deve ser levado em conta deve ser sua experiência e competência nos assuntos relacionados a posição. A sexualidade não pode ser um fator preponderante ou excludente para escolha de alguém para um cargo.” afirma a advogada Lídia Maria.

Não são todos que compartilham do mesmo pensamento que Lídia Maria. O número de denúncias de exclusão de candidatos em processos seletivos sem justa causa, somente pela sexualidade aumentou consideravelmente. Embora existam muito mais visibilidade para a causa LGBT, ainda existe muita ignorância por parte da sociedade heteronormativa, que se apegam aos antigos costumes e continuam com práticas ultrapassadas e preconceituosas.


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