Isma, Pedro e Maria são estudantes universitários que partilham da travestilidade/transsexualidade dentro de um meio acadêmico que, como tantos outros, ainda silencia e contribui na continuidade do sistema binário que invisibiliza travestis e transexuais. No meio desses contrários, os três ressignificaram os seus corpos e reencontraram suas identidades. Conquistaram sonhos, abraçaram novos, viveram dores e continuam as experienciando, e seguem um dia de cada vez. Em uma reportagem livre, Isma, Pedro e Maria compartilham as suas histórias.
por Emerson Luiz
“Somos mais do que capazes não somente de contar as nossas próprias histórias, mas de contar histórias em geral. O que é um papel cis? O que estamos concebendo como papéis cis é somente de alguém interpretando um personagem e contando uma história que não está relacionada ao seu gênero. Acho que só queremos contar histórias que nem sempre estejam especificamente relacionadas as nossas vivências enquanto pessoas trans. Queremos contar histórias que realmente analisem o que é ser um ser humano, o que é ter experiências humanas, com o amor, a família.”
- Indya Moore, atriz da série Pose, em entrevista à MTV em julho de 2018.
Isma Almeida: Sou Feliz, Amo minhas Amigas e Gosto de Dançar
Olá, eu sou a Isma, tenho 20 anos.. Então, eu sou travesti, tô morando aqui em Uberlândia atualmente, mas eu vim de São Paulo... Então, eu vim de São Paulo justamente por causa disso, da minha transição, quero falar sobre como me tornei travesti... E aí, é, eu cresci numa família religiosa, e aí as questões de gênero e sexualidade eram bem restritas lá em casa assim.. Eu tenho vários irmãos, só que eu era a única LGBT. Eu era a única afeminada, mas meus pais eu nunca achei eles violentos não. Ai eles eram da igreja e tal, e quando chegou aos 15 anos, eu comecei a libertar minha sexualidade.
Entendi que gostava de homens, e comecei a ficar com garotos. Eu me assumi como gay, foi bem difícil mas até que foi aceitável dentro de casa e... Só que foi um processo bem rápido, com uns 18, comecei a questionar o meu gênero. Eu não me identificava como homem, na minha atuação na sociedade. E aí eu conheci uma amiga maravilhosa, me inspira até hoje, e ela me ajudou muito, ela era travesti, da mesma idade que eu, na mesma escola, e ela me incentivou muito assim, na liberdade que eu podia ter. E aí eu comecei a desconstruir o meu gênero assim, o que eu mais gostava e o que não... No começo, tipo, meu nome de registro era Ismael, aí... no começo eu não falei ‘ai vou ser mulher’ sabe!?
Eu fui me testando, desconstruindo meu corpo sabe, eu não preciso usar só coisas masculinas. E aí foi isso, eu deixei a abreviação, tinham algumas pessoas que já me chamavam pelo apelido e eu gostava, achava meio sem gênero... Ai deixei Isma, só que com um ano desse processo ou até menos, eu me identificava como mulher. Eu uso o termo travesti por uma coisa mais política, muitas pessoas não gostam dessa palavra.. uso nessa forma de ressignificar. Eu tive que ressignificar todo na minha vida, coisas que eu achava mais feias, tentar achar beleza nelas. E aí teve a questão da cor que foi influenciando porque assim.. Eu sendo uma mulher, eu tenho cabelo crespo, black, e dá muita vontade de fazer tranças, mas pensa a marcação do gênero.
Quando eu tô de black, as pessoas me chamam mais no masculino do que quando eu tô de trança, e isso acaba sendo uma coisa que interfere na minha transição. E aí eu me tornei maconheira, eu sou anti-proibicionista, eu luto pela liberdade, eu acho que a maconha nesse processo me ajudou em várias coisas, me ajudou a superar várias coisas, lidar de outra forma. Porque não dá pra gente fugir dessa realidade: as pessoas que estão marginalizadas, a droga ajuda a fugir da realidade, isso é a droga. E se minha realidade não é a melhor possível, eu vou usar disso.
Mas é isso assim.. meus pais, eles me aceitam, mas eles não me apoiam. Eles me dão algumas roupas, eles tão me bancando... Eles não me jogam pra rua, igual muitas famílias fazem, mas eu entendo, eu acho que fiz uma revolução lá em casa, era muito diferente 5 anos atrás.. é uma mudança enorme assim, até meus irmãos falam, se surpreenderam. E hoje eu tô aqui na faculdade de Pedagogia, isso é uma coisa que ajuda muito, eu sempre fui esforçada para os estudos, e eles reconheceram isso... E é porque eles tinham muito esse esteriótipo de que vou virar travesti e vou pra rua me prostituir. E eu tô mostrando pra eles que vai ser diferente, assim, não só pra eles, mas pra muita gente.
E eu me orgulho de tá fazendo Pedagogia, aqui na UFU, uma faculdade pública, uma travesti, eu sou a única da minha sala... As vezes é estranho assim, porque as vezes nem eu me imagino nesse lugar, mas eu acho que posso mudar muita coisa. Eu escolhi Pedagogia justamente porque eu acho que é uma área mais fácil de me inserir, sendo esse corpo.. Eu me amo, eu sou muito feliz, eu tenho amigas maravilhosas, eu gosto de dançar, tô promovendo uma festa. Eu gosto de funk, dance hall, essas coisas periféricas. Eu gosto de moda, comprar em brechó, brincar com as coisas, sei lá, transformar uma calça em um cropped, não tentar me inserir nessa moda padrão. Tentar criar uma coisa mais individual minha.
E é engraçado esse negócio da roupa, porque é uma coisa muito relevante na minha vida, sendo trava. Antes eu me vestia pra não tá pelada só, e hoje eu me visto pra dialogar com a minha roupa, minha roupa vai falar de mim, ela me representa, eu visto com mais prazer. Conheci uma travesti aqui maravilhosa, que é a Amanda, e eu gosto muito dela. E eu gosto de conhecer travestis, dialogar com elas, porque é muito difícil. E aí, eu valorizo muito. Aqui na UFU é importante cada vez mais, tem muito pouco. Eu acabei de começar a me hormonar, vou continuar firme e forte, e terminar meu curso de Pedagogia, eu quero enfrentar a sala de aula, mas eu quero ser diretora eu acho.
Mas eu não quero me restringir só ao meio acadêmico, eu faço a faculdade só como um meio de garantir cidadania pra mim sabe!? Que sou trava, é mais difícil. Mas eu gosto muito da arte, quero continuar com a minha festa, performances, gosto de dialogar com essa linguagem. A música também gosto muito. Eu pretendo voltar pra São Paulo, não pretendo ficar aqui, tocar as minhas coisas lá, eu acho que lá e mais fácil, principalmente pra arte, e é isso!? Quero trabalhar numa escola pública, quero conciliar os dois, minha vida acadêmica com a arte.
Pedro Henrique: Renascer Custa Caro
Meu nome é Pedro Henrique, eu tenho 22 anos, e eu me assumi como trans, acho que pra mim mesmo também, com 19 anos. Eu me assumi graças a uma palestra da UFU que eles promoveram, no Umuarama, que eles trouxeram palestrantes, João Nery, e eu já tava me sentindo muito confuso na época, pra ver se ajudava, e aí finalmente encontrei a verdade. Foi uma fase muito difícil, falar pros outros, pensar em como eles iam aceitar, como eles iam enxergar, se eles iam respeitar.
Eu levei alguns meses pra me assumir pros meus amigos, e depois dos meus amigos eu comecei a falar pros meus familiares. Mas meus pais mesmo só foram saber depois. Tentei conversar antes com a minha mãe, mas acho que ela não levou a sério, não entendeu, não sei. Ela só foi perceber que era de verdade quando eu fiz um Facebook novo. Ai ela veio conversar comigo, e eu tive muita sorte em relação a isso porque minha família e meus amigos me aceitaram muito bem, e era um medo que eu tinha que era muito forte, de eles não me aceitarem. E eles foram super tranquilos, meus pais me ajudaram com o início da hormonoterapia, eles pagam até hoje porque eu não posso trabalhar por (pelo curso) ser integral, meus amigos me aceitaram muito bem, tipo.. foi maravilhoso, essa parte.
Pra começar a hormoterapia, eu fiz tudo pelo ambulatório da UFU, que é de graça. Fiz 6 meses de terapia com a psicóloga de lá, antes de começar o hormônio. E foi bem complicado porque eu tive que fazer um monte de exame, e eu tenho um problema no fígado, uma Síndrome de Gilbert. E ela atrapalhou o início da terapia, porque eu tinha a chance de desenvolver um câncer se o fígado não tivesse saudável. Mas deu tudo certo, e eu pude começar a terapia, já tô há 2 anos e 3 meses. Aí depois da terapia, começa todos os problemas em relação a cirurgia, documentos.. A documentação eu só fui mudar esse ano, em outubro, e porque eles aceitaram a lei de mudança no cartório, ai consegui mudar por lá. Comecei o processo no início de 2016, e só agora eu consegui mudar. A cirurgia eu ainda não consegui fazer, da retirada das mamas, eu tô tentando marcar ela pro início do ano que vem, em janeiro. Só que ela não é feita pelo SUS, aí é mais uma complicação, que é oito mil reais pra uma cirurgia.
Então, ou você tem o apoio.. Até a mudança de nome é uma coisa cara, porque pra você mudar pelo cartório, ou você tem o pedido do juiz ai você consegue mudar de graça aceitando a mudança de nome, ai você consegue mudar de graça, ou você gasta até 400 reais só pra mudar o nome, é muito documento que você tem que levar. Ou você tem o apoio financeiro, ou você não consegue chegar em lugar nenhum. E a maioria dos trans não tem esse apoio financeiro, e pra conseguir isso eles tem que ter um trabalho. Só que eles não conseguem trabalho por causa da mudança dos documentos, então...
Eu já fui barrado em vários lugares, porque não acreditavam que era a minha identidade antiga. E até eu provar que era eu, pra colocar passe, porque eu só podia colocar no Terminal Central, porque eu tinha que mostrar a minha carteirinha, a minha grade horária.. A grade horária eu consegui mudar o nome social, a UFU permite isso, menos na carteirinha, tem que ter o nome de registro ainda. Então tipo, eu tinha que ir lá e provar que eu tinha colocado o nome social, depois colocar passe.. Boate, não me deixavam entrar. É uma complicação, nossa, é frustrante. Então.. eu acho que deveriam aceitar essa lei, deveriam deixar de graça, e é um direito nosso. É um direito de qualquer cidadão ter os seus documentos, e eu já não tava mais... eu já não era ninguém, perante a Justiça, porque eu não conseguia provar que eu usava aquela identidade antiga e eu não tinha a minha nova. Então que que eu era pra eles? Ninguém.
Eu ainda tenho complicação com a família da minha namorada. A família em geral dela sabe, menos a avó, porque a avó é extremamente homofóbica, racista, transfóbica... então se ela souber da mínima possibilidade disso, eu tenho até medo do que ela pode fazer com a minha namorada. Então é uma coisa que a gente esconde desde o início do namoro. Querendo ou não, é uma coisa que me deixa com medo também, porque eu vejo ela, eu tenho que agir de determinado modo, eu tenho que tomar cuidado com o que eu vou falar, tenho que usar uma faixa muito mais apertada pra esconder os seios, porque ela (a avó) não pode ter nem noção disso. É desconfortável, mas é a única coisa que tenho pra falar sobre não ser aceito em algum lugar. Porque, de resto, eu tive muita sorte.
Eu conheci ela na metade de 2016. Quando eu tomei minha primeira dose, a gente tinha completado um mês de namoro. Eu conheci ela antes do início da hormonoterapia, mas eu já tava fazendo a transição, ela já me conheceu como homem trans. Mas ela acompanha todo esse processo da terapia, ainda mais que é um processo maluco, os hormônios mexem com tudo. Eu fiquei desnorteado. Tipo, você já tá passando por uma fase complicada que você já tá tentando se adequar ao corpo que você quer, ao corpo que você sonhou. Você já tá numa complicação de mudança de nome, das pessoas que não te respeitam ainda, que te vêm como mulher só pelo seu corpo. É uma loucura.
E aí você começa a usar os hormônios, e eles mudam totalmente o seu psicológico. A testosterona me deixou muito estressado, com tudo, com coisas que eu nunca ficaria na vida: uma pessoa entrou na minha frente, eu ficava muito irritado, só por causa disso. Era como se eu tivesse perdendo a vontade de viver, porque eu não tava entendendo os meus sentimentos, é uma montanha.. Você sente tudo ao mesmo tempo: você tá feliz, de repente você tá com raiva, e de repente você tá triste, e é de uma vez. E pra você controlar tudo isso, nossa.. Eu fiz seis meses de acompanhamento psicológico, porque a minha mãe queria. Ela queria que eu tivesse certeza do que eu tava fazendo, antes de começar.
E depois eu larguei, porque eu falei ‘já comecei né, tenho certeza do que eu sou, não preciso mais’. E agora, depois de dois anos, eu tive que voltar a fazer o tratamento, porque mexeu muito. E não é só comigo, porque afeta todo mundo a minha volta, porque, tá, mudou quem eu sou, mas eu mudei o modo de tratar as pessoas, eu mudei, querendo ou não, quem eu sou, minha personalidade, tá mudando aos poucos, porque eu tenho que me adequar ao que eu tô sentindo, porque eu não vou poder parar de tomar os hormônios, então o que eu tenho que fazer é me adequar. Entender o que tá acontecendo, e como segurar isso. Ainda tô nesse processo.
A cirurgia é um sonho tão grande, que só a possibilidade de ela tá tão próxima, eu não
consigo ver mais nada. Tipo, parece que.. Quando eu mudei os documentos, quando eu peguei a certidão de nascimento, foi como se eu tivesse nascido. A partir daquele momento, eu passei realmente a existir. E a cirurgia é como se eu fosse nascer de novo, só que dessa vez num corpo que eu consiga olhar, que eu consiga aceitar. Ainda vai ser um processo, porque.. os hormônios ainda tão influenciando o meu corpo, eu não mudei tudo o que eu posso mudar, e eu tenho que aprender a amar ele, do jeito que ele é.
Eu posso mudar os peitos, mas o resto ainda continua o mesmo. E só as marcas de lembrar disso sempre, eu acho que já traz um desconforto, mesmo que a gente não queira. Não é como se a gente esteja reclamando de cada passo, como se cada passo que a gente tem a gente fosse reclamar de alguma coisa, mas.. sempre tem alguma marca que vai ficar ali pro resto da vida, e sempre vai deixar essa memória da disforia que não tem como a gente desviciar.
Eu pretendo, agora que eu consegui a mudança de tudo isso, seguir minha carreira, conseguir chegar em algum lugar, construir alguma coisa com o nome, que é realmente o meu nome. De construir o meu nome de verdade. E ser uma boa pessoa né, tentar melhorar o modo de enxergar a vida, já que eu passei tanto tempo sem ver o lado bom, só pensando o quanto eu não gostava da vida, do meu corpo, que eu tava no lugar errado, que eu era uma pessoa errada. Achava que eu vinha com uma falha. Nasci estragado.. tipo, eu me julgava tipo.. ‘porque logo eu, nascer num corpo que não é meu?’. Eu tentei culpar Deus.. atualmente eu não tenho uma religião, mas eu acredito num ser superior. Eu perguntava: porque eu, porque isso acontecia com outras pessoas, e é um sentimento horrível..
Eu fiquei muito mais próximo dos meus pais depois, especialmente da minha mãe. Dos meus primos, de todo mundo em geral, mas.. com a minha mãe melhorou muito depois. Então eu acho que melhorei o modo de enxergar a vida. Ela passou a perceber mais o que eu sentia, e pensar em como eu tava me sentindo, e ela percebe minha melhora psicológica, porque teve uma época que eu tava muito afundado na depressão. Mas agora só de ver que eu tô tentando viver, acho que pra ela, deixa ela muito mais tranquila.
Maria Antonella: Ser Trans Para Ser Livre
As pessoas sabem o que é transsexualidade, elas leem sobre, a gente tem uma certa representatividade em novelas, uma certa representação em seriados, e tudo mais, só que eu acho que uma coisa que as pessoas não tem conhecimento é o dia-a-dia de uma trans. O que passa na nossa cabeça em vários momentos do dia e em várias situações da nossa, porque... Eu nunca fui cis. Eu não sou cis, então eu nunca vou saber como é que um cis pensa e assim como um cis nunca vai saber o que eu penso.
E mesmo que a gente tente praticar empatia, mesmo que a gente tente se colocar no lugar do outro, imaginar como é que é e pensar ‘nossa, eu nunca vou ser, eu nunca vou saber de fato o que é aquilo, o que é esse processo’... é a mesma coisa que eu ver uma amiga que apanhou e eu me compadecer da dor dela, mas eu não vou saber aonde tá doendo, eu não vou saber quais os lugares que machucou mais e se foi um machucado físico, psicológico, emocional e tudo mais... Então, o dia-a-dia de uma trans é completamente diferente de uma pessoa cis, no sentido de que a gente acorda com o pensamento de que talvez seja o nosso último dia.
De que, talvez, a gente não vai voltar para casa. E de todas as coisas que a gente vai passar durante esse dia, que são incontáveis, e a travesti tem que ser a mulher forte, a mais bonita, a que se veste melhor, a que chama mais atenção e sempre alegre... E muitas vezes essa alegria é uma ferida que a gente tá querendo esconder, é um machucado que a gente não quer que os outros percebam. É deitar no travesseiro e chorar, porque ninguém te amou naquele dia. E quando eu falo em amor eu não falo só em relações afetivas, amorosas, de relacionamento, mas sim em vários conjuntos. Mas vamos uma coisa de cada vez.
Bom, quando eu acordo, eu vou dizer por mim porque a transsexualidade embora seja muito semelhante em vários aspectos, ainda é muito individual e é bom que a gente valorize essa individualidade de cada uma, de saber que, enfim... Quando eu acordo, na minha porta eu escrevi três frases que marcam muito minha vida, e essas três frases que eu construí em momentos trágicos da minha vida, e que elas me ajudaram a superar aquele momento. E quando eu olho para aquelas frases, eu começo a imaginar que o meu dia tem tudo para dar certo. É um dia que tem tudo pra correr bem, pra ser feliz. Então eu não acordo com disforia, eu não acordo depressiva, eu não acordo triste, eu não acordo rejeitado, tipo, eu acabei de acordar, tá tudo bem ali, okay.
Mas quando eu me olho no espelho, já não tá nada bem. Ou, por exemplo, se eu acordo com ereção, e as pessoas costumam ignorar que trans tem pênis e a gente não fala sobre o pênis da mulher trans, e como isso é desconfortável, ou não! Pra algumas, eu tenho amigas que elas acham incrível acordar excitadas, e pra mim não, pra mim não é legal, não é divertido, não é algo que eu queira, enfim.. Então quando a gente acorda, a gente tem o nosso primeiro baque, ainda mais se, durante a noite, os pelos do seu rosto cresceram mais do que você esperava ou, enfim... Você simplesmente vai olhar o seu corpo, e você vai ver que a mulher que você acordou não é a mulher que você tá mostrando ser pro mundo.
E... e aí quando você olha pro espelho e você vê que aquela imagem que você tá vendo não é o que você queria ver, não é o que você sonhou, talvez, não é a imagem ideal que você procura, sua autoestima vai lá embaixo. E você tem que recuperar ela ali mesmo porque você não pode deixar de existir por conta disso. Então, lógico que não são todos os dias que são assim, lógico que tem dia que a gente acorda, se vê no espelho e diz ‘que mulherão você é’, né!? ‘Que incrível’, mas enfim...
Geralmente quando eu me depilo, minha disforia, ela cai muito, até eu sair de casa. Eu saí de casa, as pessoas já vão olhar, já vão rir, já vão apontar. Os homens já vão te desejar, te odiar. As mulheres vão achar você uma aberração, as mães vão pegar as crianças e vão trazer mais pra perto pra não chegar perto de você, então... Eu fico imaginando ainda, na minha situação, que eu moro em república, moro longe dos meus pais, e as pessoas que moram comigo são super tranquilas e ‘de boas’ em relação a minha transsexualidade, eu posso sair com roupas masculinas ou com pelos no rosto, ou pelos no corpo, e elas vão continuar me tratando no feminino, vão continuar respeitando minha identidade de gênero, e é um lugar que eu realmente me sinto acolhida e que se acontece alguma coisa, eu volto pra minha casa e eu tô na minha casa, tá tudo bem.
Mas, e aí quando a gente acorda e faz todo esse processo, se depila, e escolhe uma roupa, uma roupa que fica mais confortável, uma roupa que não marca muito o pênis, porque por mais que uma mulher trans tenha pênis, ninguém pode saber que você tem pênis. Ninguém pode nota-lo, ele não pode marcar, você não pode se excitar na rua, você não pode nada. A sociedade te dá um conjunto de regras ‘o que é ser trans’ e você tem que seguir isso, e quando você começa a sair desse padrão, você é totalmente criticada, totalmente humilhada.
Eu costumo dizer que são mutilações, que a gente faz, de... Pra você se encaixar numa caixinha que a sociedade impôs. E é a gente não é obrigada a entrar nessa caixinha, mas eu fazendo tudo isso, eu me mutilando, me cortando, me depilando, eu usando roupas que não marcam, que me deixam mais bonita, mais gostosa, mais atraente pros caras me olharem ou pra, ao menos, deixar um ponto de interrogação na dúvida das pessoas.
E aí você sai de casa, não no sentido dos caras te olharem com desejo e tudo mais, mas deixar
esse ponto de interrogação nas pessoas porque você parece uma mulher cis, é questão de vida ou morte. E não tem meio-termo. Se você for cis, ele vai levar só o seu celular, ou talvez alguém se compadeça, e a polícia vai te respeitar um pouquinho mais ou vai ser mais brando. Agora, se você for trans, e isso tiver evidente, ele vai chegar batendo, e as pessoas que tão ao seu redor vão ajudar a bater, não vão defender. Então ter a passabilidade não é questão de vaidade, é questão de sobrevivência.
É saber que, quanto mais mulher cis eu tiver, mais chances eu terei de voltar pra casa. Não é mais chance de eu ficar com um menino numa festa, não é eu terei mais chance de conseguir um emprego, é questão de vida. Antes disso tudo, eu preciso pensar em sobreviver. Se eu não tiver viva, eu não preciso trabalhar, eu não preciso... E as vezes bate uma bad muito assim, terrível, e ‘tomara que morra mesmo, que assim acabe, quem sabe a alma se liberte e vire a mulher que ela é de fato’ e tudo mais. Mas não, eu quero continuar travando esse sistema, eu quero continuar viva, eu preciso continuar viva.
Quem vai ser a minha voz se eu não tiver aqui? E a gente vê muitas mulheres, mulheres morrendo e acabou. Fica por isso mesmo, sem Justiça, sem investigação, sem nada, e aí quando a gente sai na rua as pessoas riem da gente, todo o processo que eu já falei, das pessoas rechaçarem a gente e aí tem a situação do emprego. Se você não tem seu nome retificado, as pessoas não vão respeitar o seu nome social ou sua identidade de gênero. Lugar nenhum, é incrível. Até no médico que você vai, e eu acho que é o cúmulo, um curso de Medicina não falar sobre sexualidade e como tratar as pessoas, e como respeitar as pessoas, ou um curso assim, umas pessoas que eu encontro que são mais dispostas a isso, são os psicólogos. Pelo menos em psicólogo eu nunca sofri nenhum tipo de transfobia. Eles sempre me perguntaram como eu gostaria de ser chamada e tudo mais, então é mais tranquilo.
Como eu tava dizendo do nosso dia-a-dia, de chegar no consultório médico e não ser reconhecida, e por exemplo, eu numa forma totalmente feminina, ir no consultório do urologista, e tipo, eu não posso ir na ginecologista, não vai dar certo. Eu gosto muito do que a Pitty falou, de quando tava aquele negócio da cura gay, e tudo mais, e ela falou assim que o que gera desconforto é a sociedade. A pessoa, ela só vai procurar a cura, só vai procurar se reverter, procurar mudar aquilo porque a gente tá criando desconforto, a gente tá contribuindo pra isso.
Então não é eles que tem que se adaptar a gente, é a gente que tem que entender que são seres humanos, como qualquer outro. Eu não tô nem aí se você usa drogas, se você transa com homens ou com mulheres, se você não transa, isso não me dá o direito de te agredir e de falar que a sua vivência é insignificante ou menos que a minha, de maneira nenhuma né!?
E o que eu fico pensando o que muda na vida das pessoas eu ser trans. Qual é a diferença? E eu costumo falar que eu sou muito pedagoga, eu sou muito didática, então eu tenho a paciência de explicar, de contextualizar e de contar a minha vivência, e as vezes eu vou falar, eu até falo muito e entendo também que há uma certa dificuldade pros caras saírem daquilo que eles estão acostumados pra começarem a experimentar algo que eles nunca tiveram contato. Seria a mesma coisa pra mim que, eu nasci no Brasil e vim de São Paulo, então eu cheguei aqui em Minas e muitas comidas daqui, eu senti essa diferença. Talvez os temperos mudam um pouco, a forma como chamam as coisas muda um pouco, então eu sentir essa estranheza no começo é comum, então os meninos sentirem isso é comum.
Mas isso não quer dizer que o homem que me ama tem que ser rechaçado, excluído, boicotado, enfim... diversas coisas pejorativas. Por que ele tá me amando, porque ele tá assumindo essa postura, então isso acontece muito e é aí quando a transsexualidade começa a afetar outras pessoas ao redor. Já teve amigas minhas que foram confundidas com mulheres trans também, principalmente mulheres negras. E eu já ouvi muitos relatos de mulheres negras que chegaram a apanhar na rua por serem confundidas com mulheres trans, pelos caras acharem que elas eram travestis. De mulheres saindo do Uber, e vir um cara e bater nelas, delas tarem andando na rua e serem agredidas.
E aí sim a transsexualidade começa a atingir outras pessoas, no sentido de a minha transsexualidade não fez mal a ninguém, foi o preconceito das pessoas que fizeram mal a pessoas que não tem nada a ver, e aí a gente começa a ver como é perigoso isso. Quando um preconceito a um grupo começa a atingir outros grupos que teoricamente não tem nada a ver com o assunto, que não tá nem naquilo. Então isso é uma coisa pra gente pensar e também analisar. Eu gosto muito daquele poema do Belchior que ele fala ‘primeiro eles levaram um grupo, mas eu não tava naquele grupo então não me importei, e depois os miseráveis, e agora estão me levando e ninguém vai se importar comigo porque eu não me importei com ninguém’ sabe!?
Como ele é bonito, como ele é atual e como ele nos leva a uma reflexão incrível. Caramba, eu fico pensando especialmente na sigla LGBT, eu acho que a gente é o T, e o T ficou por último proposital, pra mostrar que a gente sempre seria as últimas e saber que muitas mulheres trans tiveram grandes ideias, principalmente a Revolta de Stonewall foi iniciada por uma mulher trans negra e por uma amiga dela, foi ela que deu o primeiro pontapé, foi ela que agrediu o primeiro policial, e pra parada no outro dia receber o nome de gay.
E esse é um movimento totalmente branco, e ela ser esquecida, não lembrar nem o nome dela, a Marsha, e a gente esquece isso. E o movimento existe hoje, a sigla que temos hoje é graça a duas mulheres trans, e ninguém lembra disso, e ninguém fala nisso, e ninguém lembra da negritude de uma delas, e da história de vida delas, então... o LGBT já é uma coisa que vem de fora do Brasil, já é algo que a gente importa. Porque se a gente fosse falar da sigla brasileira, a gente ia falar da bixa preta, a gente ia falar da travesti, a gente ia fingir que o B não existe porque a gente sempre invisibiliza, o bissexual. O intersexo, nem sei também aonde a gente colocaria, assexuados, enfim...
Quem são as travestis e as trans daqui? E se a gente for olhar no sistema brasileiro, a gente nem teria trans, a gente ia ter travesti mesmo, porque trans é uma coisa que vem dos Estados Unidos e da Europa pra cá. Então aqui é travesti, o famoso “traveco” que as pessoas chamam na rua, e não é ele, é ela, e as pessoas não reconhecem e é quando você para e pergunta pras pessoas “você sabe o que é travesti e o que é trans?” e eles vão dizer ou travesti é o homem que se veste de mulher mas não é mulher ou dizer que travesti é a mulher trans que não fez a redesignação e a mulher trans é a que fez a redesignação, uma ainda tem pênis e a outra já está com uma vagina. Então as pessoas ainda erram nesse sentido. Então eu posso ser travesti, eu posso ser trans, a partir do momento que eu quiser, e saber que isso é sinônimo de resistência, de luta e de liberdade.
E quando eu falo “eu sou travesti, eu tô na universidade” e isso e aquilo, já começou a mudar um pouquinho as coisas mas é muito difícil. E é importante dar esses nomes, e de falar o que é, de falar quem você é, porque assim... Eu não gosto de rótulos, eu acho que rótulos são fúteis, principalmente quando você tem uma ideia pronta daquilo que é, tudo o que é você vai associar aquela imagem. As pessoas não precisam se rotular, elas não precisam colocar o nome pra si, e eu tava até falando com a minha amiga, eu me assumi trans pra ser livre.
Quando eu assumi minha identidade, eu assumi ela pra ser livre, pra eu ser quem eu sou, pra eu poder viver da maneira que eu queria, pra eu fazer tudo o que eu queria e okay. Foi um rótulo que me libertou.
A partir do momento que eu assumi que eu sou uma mulher trans, e quando a gente vai analisar o que uma mulher é, de acordo com a sociedade, e lembra que pra ser uma mulher você precisa ter uma vagina, e embora seja um contexto totalmente errado e totalmente distorcido e que não tem nada a ver mas lembrando a sociedade que, sem nenhum estudo, sem nenhuma desconstrução, pra ser mulher precisa ter uma vagina, a partir do momento que eu sou mulher não tendo uma vagina, pronto. Aí eu já desconstruí tudo.
Então, pra que seguir todo um livro de regras se a primeira regra eu já quebrei? Se o primeiro padrão eu já derrubei? Se o essencial, digamos assim, a mulher precisa ser mãe, eu não vou conseguir gerar. A não ser que a medicina avance muito e mulheres trans consigam receber útero, aí eu pensaria no caso, mas atualmente eu nunca conseguiria gerar, então... Pra sociedade, eu nunca vou ser uma mulher, de fato, porque a mulher só é mulher quando ela é mãe. E se você não é mulher sendo mulher, então eu nunca vou ser uma mulher, se eu não gerar o filho. E não é ser mãe no sentido de ter uma criança, é no sentido de gerar uma criança. Ninguém entende maternidade por adoção como maternidade, é como se fosse uma obra de caridade.
E provavelmente algum dia eu terei uma vagina, e eu provavelmente entrarei na caixinha da cis, ou não, que eu nunca fui cis, eu nunca vou ser cis, não é um rótulo que vai definir isso. Não é um corpo totalmente feminino que vai decidir isso. Eu tenho 18 anos na minha vida em que eu fui um menino, eu tenho fotos, eu tenho registros, eu tenho histórias disso, eu não fingir que esses 18 anos eu pá cai de paraquedas aos 19 anos, sou uma menina, fim. Não, eu tenho muitas coisas, eu não posso esquecer, então por mais que a ciência avance muito, eu tenha um útero e consiga gerar, por mais que eu tenha uma vagina, por mais que eu não tenha pelos no rosto, não tenha em nenhum lugar do corpo que seja, porque a mulher não pode ter pelo em lugar nenhum, eu nunca vou ser cis, mesmo que eu faça tudo para tá lá. Então eles me dão esse manual, que pra ser mulher você tem que fazer isso, e quando você faz tudo isso, você não é a mulher ainda, eles ainda não te respeitam.
Eu lembro de como eu comecei a minha transição, e eu saia com um pouco de pelo no rosto, e minha amiga dizia “corre no banheiro e tira esse xuxu” e, tipo, “coloca enchimento nos seios pra você parecer que tem peitos” e faz isso e não sei o quê, e faz aquilo e não sei o quê. E aí eu virei pra ela e falei “aí amiga é complicado porque a sociedade reconhece aquilo e não sei o quê” e ai eu falei “amiga você é livre, faz o que você quiser, você com cabelão as pessoas vão te desrespeitar, vão te tratar no masculino, vão te humilhar e as pessoas vão ser transfóbicas, então faz o seguinte, você nasceu pra ser livre, se rasga..” então quando a gente, quando eu comecei a entender que ser trans é ser livre, e que pra mim liberdade é transsexualidade, fim. Acabou. Então eu não preciso mais ficar me colocando em caixinha, logicamente que eu tenho algumas disforias a resolver, eu tenho alguns incômodos comigo mesma a resolver, e aí pra eu completar essa minha liberdade, eu vou lidar com essas questões pra eu me sentir mais à vontade comigo mesma. Porque eu não sou trans pros outros, eu não posso jamais ser trans por você, ou pra qualquer outra pessoa. Não teria sentido, não teria significado.
E aí quando a transsexualidade passa a ser um símbolo de prisão pra você, acabou. Para de tomar hormônio, para de usar roupas femininas, para de se tratar no masculino, perde o sentido. Acabou o sentido. E eu acho que é por isso que as pessoas têm tanto ódio de mim, têm tanto ódio das pessoas trans, porque a gente é livre num mundo de pessoas presas, de pessoas rotuladas e que não podem sair disso.
Quando eu falo da liberdade, eu falo no sentido melhor, de quanto os caras chegarem em mim e falar assim “eu queria tanto namorar você, eu queria tanto assumir um relacionamento com você, eu queria tanto te apresentar pros meus pais, eu queria tanto te levar nas festas dos meus sobrinhos, e tudo mais, eu queria tanto formar uma família com você, eu queria tanto casar e tudo mais, mas eu não faço isso porque eu tenho medo do que as pessoas vão pensar e do que a sociedade vai falar de mim”. E por mais que eu entenda eles, eu falo “e vai continuar assim porque existem pessoas frouxas que nem você que não assume essa postura de enfrentamento, é por isso que as pessoas gostam de mim, porque eu sou livre” então eu falei assim: “o que impede de assumir um relacionamento comigo, o medo das pessoas, o medo dos olhares, as pessoas te olharem e cochicharem, as pessoas rirem e te chamarem de gay? Então por que você tá vivendo? Qual é o sentido da vida? ” Voltando aos rótulos, okay ter rótulos, mas que seu rótulo seja sua liberdade. Qual é o problema de um homem hétero cis pintar as unhas? Qual o problema de uma mulher cis hétero usar roupas masculinas?
Quando eu vejo as pessoas me olhando, independente da cara que elas fazem, independente do olhar, eu penso “nossa, você tá tão bonita, você tá tão maravilhosa, que as pessoas ficam incomodadas”, quando é uma cara feia. Quando é uma cara mais de desejo, eu falo “olha só, você tá tão gostosa que as pessoas tão te desejando demais” e entender que tipo, aquilo que doía tanto em mim, hoje é minha autoestima, hoje tá me fazendo bem. Lógico que nem sempre consigo, mas eu falei um monte de coisa, abri um monte de parêntese, não fechei quase nenhum, mas a vida é assim. Mas o rótulo tem que ser a liberdade. Fim.
E hoje a gente fala muito sobre a liberdade: assume a sua cor, assume a sua pele, o seu nariz, pra que tanta cirurgia plástica, tá tudo bem você não ter o celular da última moda, tudo bem. Seja você, acabou. A gente tá aqui pra isso, pra ser a gente. Se a gente não for a gente, quem vai ser, o que vai ser, quando a gente vai ser? Tem pessoas que acreditam que a gente vive só uma vez, tem pessoas que acreditam que nessa encarnação a gente precisa ser o que somos, e fim. Eu acho que essa é a principal mensagem que a transsexualidade, como um todo, no sentido de termo, quer passar pra nós: ser livres. Quebrem protocolos, quebrem rótulos, quebrem regras, quebrem imposições, quebrem posições sociais, físicas e todas que existem, todas que possam te prender e te limitar. A gente não é passarinho, mas a gente tem asas e a gente pode voar.
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