Devido a variados fatores genéticos, algumas pessoas nascem com variações congenitais de anatomias sexuais ou reprodutivas que não se encaixam perfeitamente nas definições típicas de sexo masculino ou feminino. Elas são denominadas intersexo e, apesar da pouca visibilidade, também fazem parte da comunidade LGBTQI+.
Por Gabriela de Carvalho
A intersexualidade é uma condição congênita que pertence ao código genético do sujeito desde o nascimento. Apesar disso, a anatomia intersexo nem sempre está presente ou visível desde então. Algumas pessoas a descobrem durante a puberdade ou na vida adulta, quando almejam ter filhos. Isso, porém, não acontece com todos, haja vista que muitos morrem sem saber da sua condição.
Segundo a Biologia, existem apenas dois sexos: o masculino e o feminino. Todavia, os indivíduos intersexo se encontram entre os dois extremos. Isso acontece devido a diversas questões, como as relativas aos cromossomos, às gônadas (testículos ou ovários), aos hormônios, à aparência das genitálias. Assim, é evidente o largo espectro de anatomia sexual existente Segundo a terapeuta ocupacional, intersexo e ativista Dionne Freitas, são 40 estados intersexuais.
Entretanto, são inúmeros os obstáculos enfrentados por esses sujeitos. Entre eles, a invisibilidade no meio social, a não-compreensão da situação congênita, a discriminação. Elas desencadeiam consequências severas, como a mutilação das genitálias de crianças e de adolescentes.
Frente a esses empecilhos, foram criadas algumas formas de tentar contorná-los. Dentre eles, o Dia da Visibilidade Intersexo, 26 de outubro. A data escolhida remete a esse dia do ano 1996, quando houve uma manifestação pública de pessoas intersexo em frente à Academia Americana de Psiquiatria, em Boston, nos Estados Unidos, durante uma conferência anual.
Anos atrás, o termo usado para remeter a eles era hermafrodita, mas, com o tempo, ele entrou em desuso. Sobre isso, Dionne Freitas explica: “esse termo era usado antigamente e vem da junção dos nomes de um deus e uma deusa gregos: Hermes e Afrodite. Hermes, entre outras coisas, era o deus da sexualidade masculina e Afrodite, da sexualidade feminina, do amor e da beleza". Ela explica que o termo entrou em desuso assim como o lepra, remetente à hanseníase, devido à carga história negativa associada a uma suposta maldição divina. Ela acrescenta: "Hermafrodita, pseudo-hermafrodita e hermafroditismo carrega toda uma carga negativa também.
Isso tudo acontece, pois, antigamente, nas dezenas de culturas, nós, intersexuais, éramos vistas como representações do divino na Terra: éramos cultuadas e tal.
Porém, com o advento da cultura judaico-cristã-islâmica, tudo que se remetia a essas culturas começou a ser destruído, inclusive a nossa existência – levando a palavra hermafrodita a ganhar carga negativa e nossa condição sendo demonizada. Enfim, é por essas e outras coisas já citadas que esse termo está caindo por terra. Até porque, quem tem que decidir como somos chamados somos nós intersexuais, e não as pessoas cisgêneras, que não passaram por essas vivências, né?”.
Contudo, as singularidades pertencentes a esses indivíduos não apresentam grandes consequências na saúde das pessoas – como dito, algumas nem chegam a ser identificadas. De acordo com Ana Karina Canguçu Campinho, psicóloga e doutora em saúde pública, que atende no Centro de Referência no Atendimento a Pessoas Intersexo do Hospital Universitário Professor Edgar Santos, em Salvador (BA), o sofrimento não é por ser intersexo em si, é pelo olhar o outro e pelo preconceito.
Esse preconceito tem início já no registro de nascimento da criança. Em entrevista com Márcia Karnopp, graduada e pós-graduada em Direito e acadêmica de Serviço Social, o processo é discriminatório desde o princípio:
“quando a criança nasce, quem faz a investigação da identidade sexual é o médico mediante aos exames com base na aparência externa, na presença dos órgãos internos reprodutivos, na identificação dos cromossomos, o XX ou XY, que vai determinar essa identidade sexual e se vai haver uma intervenção cirúrgica que vai decidir o sexo dessa criança. Hoje, essa decisão é realizada através dos exames médicos, mas isso não quer dizer que seja esse sexo escolhido pelos médicos é que vai definir isso".
"Na verdade, o individuo que está ali tem o direito de escolha e isso tem sido alvo de grandes criticas. A cirurgia realizada vai mutilar e não tem como reverter. Isso é basicamente uma afronta ao direito de escolha. Toda pessoa tem direito a sua personalidade."
Márcia ressalta que a identidade dada a um sujeito no nascimento pode não corresponder com a que ele irá se identificar ao crescer e entender-se como indivíduo no imerso meio social. Ela continua: "mas, se houver uma cirurgia, não tem como tomar uma decisão completa, você vai ter sido mutilado e impedido de decidir qual sua identidade, seu gênero. Hoje em dia, não existe mais uma escolha. Hoje você pode escolher o que quiser, você pode ser livre para ser o que quiser. Essa decisão cabe a pessoa, não aos pais, não aos médicos. Isso, no meu entendimento, é completamente inconstitucional, pois a pessoa tem liberdade para fazer escolha, a partir do momento, que você a tem, você deve ser preservado até o momento da escolha”.
Como dito, no nascimento essas crianças são examinadas por uma equipe médica que avalia a formação congênita. Quando acontece no Brasil, o Conselho Federal de Medicina dá suporte a procedimentos que buscam alterar os corpos de bebês e definir sexo e gênero. Devido a isso, centenas de sujeitos foram mutiladas. Entre eles:
Amiel Modesto Vieira: teve Síndrome de Insensibilidade a Andrógenos (SIA) ao nascer e, apenas aos 33 anos, descobriu que, foi submetido a uma cirurgia de vaginoplastia aos nove meses de idade.
Michele Bittencourt: quando nasceu, foi verificado que seu genital possuía um clitóris avantajado, muito semelhante a um pênis, um útero pequeno e gônadas que não produziam estrogênio. Optaram por defini-la como pertencente ao sexo feminino e a submeteram a duas cirurgias.
Ernesto Denardi passou um ano sem certidão de nascimento, pois a equipe médica não sabia classificá-lo como do sexo masculino ou do feminino. Ernesto nasceu com um pênis, mas também com trompas. Ernesto foi operado e teve os vestígios de sistema reprodutivo feminino retirados.
No mundo, existem outros vários países que proíbem a realização de cirurgias em recém-nascidos intersexos. A Alemanha, por exemplo, fornece o direito do registro de bebês como sexo indefinido, de modo a fornecer uma saída à escolha compulsória de feminino ou masculino dessas crianças.
O Brasil, porém, ainda se mostra extremamente estagnado quanto ao amparo da sociedade intersexual e preso a conceitos binários. De acordo com Márcia Karnopp, não há uma legislação específica que fale sobre esses indivíduos. A Constituição Federal vigente garante o direito à igualdade, à liberdade de expressão, de religião, mas não protege os intersexos. Segundo ela, a legislação não foi adiante no sentido de amparo a essas pessoas e, hoje, as pessoas contam com as poucas coisas que existem, como a legislação do registro civil, que aborda a importância do nome, do reconhecimento da personalidade humana e isso contribui com a efetividade da dignidade dessa pessoa. Esse registro é gratuito e uma obrigação dos pais. Além disso, ele deve ser realizado em até 15 dias após o nascimento, sendo que esse prazo pode ser prorrogado apenas por mais 15 dias. Márcia prossegue: “a gente já está diante de um problema, pois, na intersexualidade, necessariamente precisa do desenvolvimento da criança para ter certeza de qual seria a sua identificação”. Segundo a advogada, existe um documento chamado Declaração de Nascido Vivo, o DNV, expedido pelo Ministério da Saúde, que é realizado em caso de genitália indefinida ou de hermafroditismo, em que o médico descreve a anomalia congênita e detectável no momento do nascimento e, também, diagnosticar essa anomalia. “No caso, no Brasil, não tem nem na lei dos registros públicos, nem o Conselho Nacional de Justiça regulamentam como proceder no caso de registros com o DNV. Essas legislações dos registros públicos falam apenas do sistema binário. E essa questão, que o registro público apresenta a obrigatoriedade, afronta os princípios da intimidade e da privacidade, pois, na maioria das vezes, o próprio cartório se nega fazer esse registro”, diante disso, os pais fazem o registro do sexo e, se eles não fizerem essa declaração conforme o que imaginam, vêem e pensam. Isso tudo acontece, mesmo sem uma definição de sexo, até o momento que a criança se reconhecer já adulto ou adolescente e dizer de fato qual o sexo que ela pertence. Márcia prossegue:
“ao buscar pelo registro, ela está assegurando o seu direito à cidadania, a ter um nome, mas, não é necessário que tenha uma identificação genital, se é feminino ou masculino no registro. Nem a Constituição Federal fala que você deve se reconhecer como homem ou mulher. Já existe essa proteção do sexo, do gênero. Isso é uma postura discriminatória, criação da sociedade e omissão da legislação que afronta com o direito de escolha. A questão de fazer uma escolha e definir isso ou aquilo é discriminatória”.
A intersexualidade não desencadeia empecilhos físicos, as questões mais dolorosas relacionadas a esse sexo são o preconceito e a discriminação da sociedade – como narrado anteriormente. Essas questões montam histórias cheias de obstáculos, que não deveriam existir. Uma dessas histórias é a de Dionne Freitas.
DIONNE FREITAS
Dionne Freitas é intersexo, graduada em Terapia Ocupacional, pós-graduada em saúde do adulto e do idoso, ambas pela Universidade de São Paulo (USP). É mestranda na Universidade Federal do Paraná (UFPR) na área de políticas públicas para trabalhar com pessoas transgêneras. Além de tudo isso, Dionne é militante, ativista pelos direitos da população transgênero e pela intersexual e até mesmo youtuber.
Dionne nasceu com uma variação da Síndrome de Klinefelter, uma condição genética em que a pessoa do sexo masculino carrega um cromossomo X a mais. No caso da ativista, apenas em algumas células. Ela apresentava hipogonadismo, mau funcionamento das glândulas, afetando a produção de hormônios. Mas, nenhuma dessas características impediu sua família de registrá-la e criá-la como pertencente ao sexo masculino, uma vez que a equipe médica disse à família que o atraso no desenvolvimento dos órgãos era transitório e tudo se normalizaria.
Desde a infância, Dionne se identificava com o universo feminino, com todas suas cores e brinquedos. Porém, por causa do diagnóstico médico, do seu registro, em todo esse período, ela era tratada como ele. Sofria repressões, perseguições.
Devido aos seus comportamentos e trejeitos mais femininos, a militante era taxada, muitas vezes, como um homem gay. Ela recebia apelidos pejorativos como travequinho, bichinha. Frente a isso, ela evitava usar o banheiro masculino, por exemplo, para evitar viver mais situações de assédio.
As agressões partiam de meninas, de meninos, da própria família, dos vizinhos. Mesmo depois que o corpo feminino começou a florescer, a repressão de seu pai e insistência para que ela mostrasse comportamentos e para que vestisse roupas masculinas persistiam. Apenas um padre e uma psicóloga ajudavam a jovem a se compreender.
Somente com a chegada da puberdade, a questão da intersexualidade foi sendo esclarecida para Dionne. Seu corpo não produzia hormônios masculinos e nem femininos. Sua identidade de gênero é feminina. Enquanto isso, equipes médicas tentavam injetar hormônios masculinos em seu corpo a fim de estimular uma produção hormonal. Assim, Dionne assumiu-se como uma mulher trans intersexual e, em um ato de desespero, iniciou a ingestão de comprimidos anticoncepcionais.
Aos 14 anos, após inúmeras problemáticas burocráticas, familiares e médicas, Dionne começou o tratamento hormonal com estrogênios. Assim, seu corpo se desenvolveu com intensidade. Até mesmo seu guarda-roupas foi modificado. Na escola, a convivência era complicada, mas acabou tornando-se harmônica.
No bairro, a situação era mais complexa: “Fui muito perseguida no meu bairro, levava pedradas no meio da rua. As pessoas associavam a questão da intersexualidade à promiscuidade. No Brasil, 90% das transexuais acabam na prostituição. Diziam que esse seria meu fim”. Frente a isso, se refugiava nos estudos e no esporte, ela é, inclusive, faixa roxa no karatê. A militante acrescenta: “O que mais me espantava nisso tudo era que muitos meninos que me humilhavam publicamente, queriam ter relação afetivo-sexual comigo escondido”.
Aos 18 anos, entrou no curso de Terapia Ocupacional, na Universidade de São Paulo (USP) - aliás, Dionne foi a primeira da família a ingressar em uma universidade pública. Mas, as violências continuavam. Ela sofria agressões e foi vítima de tentativa de estupro. As pessoas achavam que ela ia para a faculdade se prostituir. Mesmo assim, não perdeu as forças. Aos 19 anos implantou silicone nos seios e, aos 20, fez a operação de mudança de sexo.
Atualmente, Dionne participa de associações que fortalecem a luta LGBTQI+. Forte, Dionne continua na luta, por ela e por outras, como Camila Gadelha, intersexo e militante, sofreu muito ao tentar entender a si e ao seu corpo:
“Demorei mais de 30 anos até aceitar meu corpo, minha condição e a mim mesma. Foi um processo muito doloroso, tanto fisicamente quanto emocionalmente. Me machuquei muito tentando habitar minha própria carne e ainda vacilo de vez em quando. A sensação de solidão da pessoa intersexo é muito real e vai além de não existir em formulários ou certidões de nascimento. A maioria dos médicos não conhece a condição, a maioria dos terapeutas não conhece a condição, a maioria das pessoas ignora a existência de um corpo que não esteja encaixado no binarismo do masculino e feminino. É difícil se conectar com outras pessoas quando sua natureza é desconhecida”.
Camila Gadelha
Infelizmente, Camila deu fim a sua vida no início do ano de 2018.
Também por Camila, Dionne permanece na luta, para que nenhum outro sujeito sinta o desespero, a solidão que ela sentiu. Para que todos permaneçam fortes na luta pelo fim da discriminação.
Com o mesmo objetivo, têm-se várias associações, dentre elas:
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) que tem uma área específica para atender os intersexos. Essa associação é presidida por Toni Reis e essa área é coordenada pela própria Dionne Freitas.
Associação Brasileira de Intersexuais (ABRAI): Fruto do desejo de jovens intersexo que se uniram com o objetivo de tornar a intersexualidade visível e de lutar para a despatologização dos seus corpos.
São várias organizações existentes para lutar pelos direitos das pessoas intersexos, contudo, todas almejam o fim do preconceito a fim de concretizar uma sociedade mais harmônica, na qual todos possam ser livres. Livres para serem quem são e não serem obrigados a encaixar em condições pré-existentes. Livres para serem felizes, livres para existirem.
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