Natania Borges, mulher trans, cantora, atriz, ARTISTA!
por Lucas Ribeiro

Nascida em Salvador, Natania chegou em Uberlândia em 2012 para cursar Ciências Biológicas na tentativa de fugir da arte e da música. Estava frustrada por uma série de acontecimentos e assim, pensou em cursar qualquer outra coisa fora da área da música. Escolheu a biologia por ser a área que ela mais gostava na escola: se fosse para ser outra coisa na vida que não fosse artista, que fosse a biologia então. Um engano. A música a encontrou logo de cara e no primeiro período da faculdade, na sua turma tinha um amigo que tocava violão e a convidou para cantar.
Partindo disso, Natania começou a ter de volta contato com a arte e embora não tivesse tanto espaço enquanto cursava biologia, não abandonou a música durante a graduação. Não se arrepende da escolha que fez para sua graduação porque a biologia a ajudou muito a descobrir novas coisas, descobrir seu corpo, sua identidade... E foi nesse caminho que Natania deu, talvez, seu maior passo: ao interpretar uma transformista numa peça de teatro, ela reconheceu sua verdadeira identidade de gênero.
“Me lembro que quando tava fazendo laboratório pra Vivian, eu peguei um salto stilleto de um amigo meu, coloquei esse salto e comecei a andar dentro de casa. Eu morava numa república com uns amigos, hoje esse amigo também fez processo de transição e hoje é um homem trans. Eu falei “ e aí amigo, o que você achou, vou ter que andar uma semana de salto, vou ter que fazer uma cena de salto” e meu amigo virou e disse “ é, Vivian Lolita não vai mais embora”... E eu ri naquela época e hoje realmente Vivian Lolita não foi mais embora. Na verdade, ela já estava aqui (...)”. Esse laboratório foi uma experiência fundamental para que Natania enxergasse o que estava dentro de si mesma.
Retomando sua trajetória nos palcos, o início do interesse em atuar veio quando já não cabia mais na biologia. Ela caiu na real – como ela mesma disse - e pensou “o que eu to fazendo da minha vida?!” e decidiu voltar para as artes e procurar fazer alguma coisa que a ajudasse artisticamente. Como já cantava e estava planejando fazer um trabalho autoral (além de sua banda) resolveu fazer Comufu, uma oficina de teatro realizada pelos alunos e voltada para a comunidade, visando uma evolução em sua interpretação de palco e para o canto. Participou de sua primeira montagem – o espetáculo Fragmento de Nós, onde interpretou uma transformista - e daí em diante não conseguiu mais não se envolver com a arte. Conheceu amigos do meio artístico, como Waquilla Correia, ela então a chamou pra fazer o Olho da Rua em 2016.
Começou a ter contato com o pessoal da arte quando deflagrou uma greve na universidade e Natania resolveu ocupar o campus com o pessoal do bloco 3M, onde acontecem as aulas das artes, porque aquele era o único bloco que estava ocupado. Se juntou ao grupo de artistas e começou a desenvolver um trabalho ao lado deles. Até então só tinha feito o Fragmento de Nós, começou a fazer performances e logo depois, estreava em Benedites, espetáculo escrito durante a ocupação e o resultado final da greve. Benedites ficou 2 anos na estrada e foi um sucesso! Sobre os planos de voltar pro teatro, Natania se diz uma intrometida. É atriz, performer, cantora... Já tem cerca de quatro performances sozinhas e mesmo não estando com o coletivo Ocupa Teatro em atividade com Benedites, ela continua fazendo suas atividades com o grupo. Tem planos de fazer um curta, fazer cinema e outras peças de teatro: “Acho que juntei tudo. Acho que essa é a riqueza artística, ser uma artista híbrida, que consiga articular nas visuais, na dança, na música, no teatro... Fazer com que isso tudo se junte e que seja uma manifestação artística só.”
Fazer uma transformista foi um botão de ligar a percepção sobre sua identidade de gênero. Antes disso, ela não tinha tido contato com o público trans mesmo que durante sua graduação ela tenha convivido com uma caloura transsexual. Natania já debatia gênero e sexualidade na universidade e estudava bastante sobre isso por já estar prestando mestrado nessa área. Com a montagem de Fragmento de Nós, a personagem transformista acabou indo para Natania e essa imersão no universo trans fez como que ela olhasse para trás: “Aquela personagem na verdade me fez olhar pra trás, de tudo que eu tinha passado na infância, do meu comportamento, daquilo que estava dentro de mim... A partir dali começou uma reconstrução do que eu era, que sempre foi abafado pela minha família.”
Ela cresceu em berço de família evangélica e passou por um processo delicado durante toda a infância. “Eu era uma criança calada, não fazia amizade. Eu não falava um A. Eu entrei na escola e até minha quarta serie do ensino fundamental, eu entrava muda e saía calada da sala de aula. Não tinha coragem de falar com ninguém, criada dentro de casa, mal, mal saia de casa pra brincar na rua com os meninos.” Ela também relembra momentos onde já sentia sua feminilidade dentro de si desde pequena: “Eu me lembro, eu tenho flashes de quando minha mãe me levava em festas na casa do meu tio e tocava É o Tchan, eu virava a Carla Perez. Eu, minha irmã e meu primo. Ele era o Jacaré, eu e minha irmã a loira e a morena do Tchan. E a gente requebrava e minha mãe num falava nada. Ela nunca impediu a gente de fazer nada porque ela sabia que era coisa de criança. Ela virava pra gente e falava assim: olha a gente não comemora, a gente não faz isso por causa disso, disso e disso mas se você quer fazer, faça. Minha mãe sempre foi dessas. E eu me lembro também que na minha infância quando meu pai e minha mãe saiam de casa, eu ficava fascinada nas novelas, de época principalmente. Pegava o salto da minha mãe, pegava o lençol, fazia vestido, aquilo outro ficava dançando dentro de casa e tal, isso foram coisas que foram abafadas e eu não tinha percebido. Eu acho que a violência e a heteronormatividade é tão problemática, é tão pesada que vai engolindo a gente aos poucos. Aí vai surgindo o modelo de masculinidade. Eu sofri muito na infância em relação a isso, os pais não queriam deixar as crianças brincarem comigo por causa disso...”

Para tentar se encontrar em algum lugar, Natania buscou mergulhar na igreja, ainda que tivesse havido um apontamento por parte da igreja na pessoa e na sexualidade dela.
“Na igreja todo mundo falava e meus pais tinham que se defender e aí eu comecei a mergulhar no evangelho, na igreja, acho que pra suprir a falta de encaixe, pra eu conseguir me encaixar em algum lugar e pra igreja evangélica eu fui mergulhando ainda mais, fui tentando comprar um modelo de masculinidade que não me cabia mais, comprei durante muito tempo até ver que isso não me sustentava e que isso não fazia parte de mim.”
A aceitação da família é algo que ela conquista a cada dia que passa, na sua maneira. Como no dia em que contou para sua mãe através de um telefonema que era uma mulher trans. Natania optou por usar a linguagem mais difícil, a linguagem científica. Sua mãe não entendia sobre o assunto mas é uma mulher que se abre para ouvir algo novo. Apesar de sempre reforçar que não concorda e que para ela isso é um pecado, a mãe diz que quer ver a filha feliz. Isso já acrescenta muito à trajetória da artista como uma mulher trans. Outro dia, ao ver as fotos que a filha fez para o calendário de um evento da UFU, a mãe elogiou a beleza de Natania: “Odeio ter que admitir mas nessa foto você está linda.”. São esses pequenos gestos que fazem ela sentir que tem conquistado o respeito com sua identidade.
A irmã Noemi é quem acompanhou tudo de perto e quem dá total apoio para a irmã. Elas são confidentes desde a infância e moram juntas atualmente.
Há muitos obstáculos, como amigos que se afastaram, pessoas que ela percebe que lidam de forma não tão agradável com ela gostaria com sua identidade de gênero. Ela ainda tem dificuldades de se impor em algumas situações mas ela contorna tudo com muita resistência.
Natania é uma mulher forte e que sabe que liberdade é não ter medo: Resistência é um ato político e natural. Todos os lugares que eu habito são lugares de resistência.” Ela, que chegou a achar que não tinha capacidade de passar no curso de Música, hoje se destaca cada vez mais como uma artista completa em todas as áreas da arte!
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