A palavra queer tem ganhado maiores dimensões no cenário LGBTQI+ atual, mas o seu significado ainda não é tão claro. Seu uso vem de décadas passadas, e ganha maiores proporções na teoria que a define e estabelece o propósito de seu uso: a Teoria Queer. Essa é uma pequena reportagem sobre a questão queer.
por Emerson Luiz
Atualmente, a palavra queer tem ganhado maior uso e espaço entre os integrantes da bandeira/movimento LGBTQI+. Quem ela abarca, entretanto, ainda é um conceito turvo para muitas pessoas.
A palavra queer tem um peso histórico muito significativo, que vem liderado pelos esforços intelectuais de Judith Butler. Filósofa norte-americana e professora de retórica e literatura comparada, Butler é a mentora da onda intelectual conhecida como Teoria Queer.
Seus conceitos e postulados ficaram mais conhecidos, de certa maneira, pelos ensaios de Sarah Salih, intelectual britânica que analisou os trabalhos de Judith Butler e deles construiu a obra “Judith Butler e a Teoria Queer”, do ano de 2002.
O termo queer se populariza, precisamente, nos Estados Unidos durante o fim da década de 80 transitando para os anos 90. Na época, se tratava de uma palavra pejorativa, designada para classificar todos os grupos não pertencentes a norma de vida heterossexual, isto é, que não adotavam o comportamento e o regime afetivo de pessoas que se atraíam pelo sexo oposto. Nesse sentido, o termo enquadrava, por tabela, os homossexuais, lésbicas, travestis, transexuais e até mesmo prostitutas.
Era preciso designar uma nova dimensão para a palavra: ressignificá-la, como os movimentos sociais muito o fazem. Em medidas proporcionais, a palavra queer estava para o contexto estadunidense dos anos 80 assim como as palavras preto, bixa e travesti estão para os protagonistas dos movimentos negro e LGBTQI+ atuais.
Cássio Araujo Rocha, mestre em História pela UFMG, contextualiza a força discursiva do termo em sua resenha intitulada “Um pequeno guia ao pensamento, aos conceitos e à obra de Judith Butler”. Rocha enumera um momento histórico de efervescência das pautas dos movimentos sociais, em especial do LGBTQI+, em torno da premissa da identidade. Nesse sentido, insurgia-se também uma nova leva de intelectuais – nessa esfera, Judith Butler -, gays e lésbicas, solidificando as questões dos movimentos. Os anos 80 foram, também, palco do surto do vírus HIV e a proliferação da AIDS que, pelos poucos conhecimentos da época e pela maior disseminação, inicialmente, entre a comunidade gay, ficou conhecida como o “câncer gay”.
Percebe-se então, um cenário dúbio no qual a palavra queer sustentava duas instâncias de significado: uma de resistência e de apropriação do termo pelos próprios LGBTQI+ enquanto forma de afirmação no plano social; e outra de inferiorização, desumanização e violência pelos defensores e adeptos do estilo de vida heterossexual.
Contrapondo-se a estes últimos e questionando-os é que Butler dá início a construção de sua reputação nos estudos de sexo e gênero. Materializa, dessa forma, a Teoria Queer, perspassando e desconstruindo não somente os dois conceitos citados, mas também conceitos como o de sexualidade e raça.
Guilherme Bessa Ferreira, mestre em Psicologia da Saúde pela UFU, traça em sua resenha do livro de Sarah Salin os inspiradores teóricos de Butler na construção de sua teoria. Dentre eles, Michel Foucault, Sigmund Freud, Louis Althusser, que discorreram sobre psicanálise, sexo e poder.
Com ideias e mentes e uma bagagem intelectual, Judith Butler afirma que o gênero é uma categoria social construída, que gera as expectativas de gêneros alegorizadas pelos papéis sociais, e que é performática.
Para colocar o gênero enquanto performático, a autora remete ao conceito construído por John Langshaw Austin, um linguista britânico. Paulo Ottoni, professor associado do Institudo de Linguagem da UNICAMP, em seu artigo “John Langshaw Austin e a Visão Performativa da Linguagem”, postula que a performatividade deve ser entendida como uma ação praticada pelo discurso e que verbaliza certezas.
A ação é praticada diversas vezes, repetidamente, fundindo, em um corpo só, aquele que discursa e o seu próprio discurso. Assim sendo, pensando o gênero, ele seria uma prática discursiva certa e imutável, repetida incessantes vezes enquanto status de existência.
O discurso do gênero seria calcado em uma matriz heterossexual que, muito reproduzida e indubitavelmente certa, excluiria todas as outras possibilidades de ser e existir que estão fora de sua bolha.
A questão queer tem um lócus histórico que favorece o seu fortalecimento, não somente pela proficuidade da Contracultura e anti-stablishment que ascendiam nos Estados Unidos dos anos 60, mas também pelo adventos dos estudos da pós-modernidade, um movimento intelectual em processo no período.
Dentre os muitos estudos e teórica, a escola da pós-modernidade tem como uma questão muito incisiva o surgimento de uma vida pautada na fluidez e da flexibilização das instituições, que sinalizariam novas configurações nas relações e até mesmo no modo de existir. Zygmunt Bauman é um dos autores mais renomados nessa fase, tendo teorizado, quando em vida, sobre relações fluidas, xenofobia, e o não reconhecimento do outro. Gilles Lipovestky teorizou sobre como a desconexão com as instituições fixas, estáveis e seguras nos guia para um olhar excessivamente atencioso para nós mesmos, a partir do qual vemos tudo pela perspectiva do “eu”.
Apesar dessas visões quase escatológicas, a teoria de Butler merece uma reflexão. Com a Teoria Queer, a composição homem e mulher é posta à prova e também tudo aquilo que ela representa, transcendendo os pilares do definido como masculino ou como designado naturalmente a ele, e o mesmo com o feminino.
O movimento artístico dos anos 80 também foi um grande impulso para os questionamentos trazidos pela teoria queer, conscientemente ou não. Ao mesmo tempo que a cultura dos club kids desenhava o cenário noturno dos clubes de Nova York, com roupas e maquiagens chamativas, artistas como Freddie Mercury, David Bowie, nos EUA, e Ney Matogrosso, nos palcos brasileiros, faziam história, refazendo o território do masculino.
Hoje, a questão queer é notável pela cultura cada vez mais emergente e rentável das drag queens. A etimologia do termo drag deriva de um processo de encurtamento da expressão “dress as a girl” que, em tradução livre, significa “vestir-se como uma garota”. Provavelmente por isso, a arte drag é conhecida, em grande parte, pelos performers que fazem do seu corpo uma tela na qual projetam a ilusão feminina. Apesar da etimologia, existem drags que exploram o gênero enquanto humor e caricato, e há também os chamados drag kings – performers que, ao contrário das queens, criam a ilusão masculina.
Dentro de todas essas possibilidades, diversos corpos: todas as performances drag são feitas por homens e por mulheres, que recriam em seu corpo um novo ou até o reinventam, transitando no mundo masculino e no feminino. Transpassam o cânone normativo da heterossexualidade.
A cultura drag vem sido consumida com alvoroço e crescido mundo afora. O reality show RuPaul’s Drag Race, referência na arte drag queen no mundo todo, soma mais de 10 temporadas e elenca RuPaul Charles, o seu apresentador, na posição de drag queen mais conhecida do mundo. No Brasil, artistas como Pabllo Vittar, Glória Groove, Aretuza Lovi e Lia Clark lideram a presença drag no meio musical, fazendo a vivência queer se transformar em mensagem. O grupo de rap Quebrada Queer, só de integrantes gays, afirma um masculino que contorna traços de feminilidade, e ainda mantém a firmeza comum do discurso de rap, ocupando um espaço musical que reforçou sempre a virilidade e masculinidade.
De Bowie até RuPaul, de Ney até Quebrada, de Judith para o mundo, a teoria e o termo queer transitaram pela história em personas, momentos e questionamentos. Criaram e recriaram resistência. Desmontaram barreiras e ofereceram braços abertos para os que não podiam existir.
Nada mais queer do que poder resistir.
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