É impossível não relacionar o universo LGBT às Drag Queens. Mas quem seriam elas? O Dicionário de Cambridge descreve o termo Drag como "homem que se veste de mulher, usando roupas exóticas e maquiagem carregada, como diversão ou a trabalho". Seria assim tão simples?
por Anna Carla Di Nápoli
A HISTÓRIA… BEM RESUMIDA
Existem várias teorias sobre a origem do termo Drag Queen, mas a real gênese ainda é incerta. Muitos acreditam que o termo vem do acrônimo da frase “Dressed Ressembling Like A Girl” (Vestido como uma garota, em tradução livre).
Também persevera uma ideia de que o termo é relacionado aos dragões, uma vez que a junção de palavras Drag e Queen, se assemelha muito a “rainha dos dragões”. Tal teoria relaciona as criaturas místicas - normalmente feias - à falta de beleza das Drag Queens, mas, por motivos óbvios, ela nunca foi muito aceita.
Dizem que o termo nasceu por volta de 1870 nos Estados Unidos da América, mas ninguém tem evidências da veracidade essa afirmação. Porém, se engana quem acha que a prática de um homem vestir-se de mulher é recente. Na Grécia antiga - bem antes de Cristo ter nascido - já era muito comum homens representarem papéis femininos em peças de teatro, uma vez que as mulheres eram proibidas de performar.
Há também uma lenda que diz que Shakespeare costumava referir aos personagens femininos interpretados por homens nos rodapés de seus textos com a palavra drag. Entretanto, foi descoberto que ele utilizava esse termo porque em inglês “to drag” quer dizer arrastar, assim, ele se referia ao fato de que os longos e grandiosos vestidos femininos se arrastavam pelo palco, e não atribuía o termo aos indivíduos.
Até então a figura da Drag não era associada ao homossexualismo. No momento em que as mulheres começaram a ganhar espaço nos teatros, o homem vestido de mulher era só utilizado em caso de sátiras ou de comédias. Assim, as “damas" do teatro passaram a se apresentar também em clubes. No entanto, com as duas guerras mundiais e as transformações por elas ocorridas, a posição da Drag na sociedade foi revista e aos poucos passou a estar associada com o homem homossexual, marginalizando a prática.
Nos anos 60 a cultura pop ganhou espaço nas grandes metrópoles e com ela a comunidade gay começou a ter uma maior visibilidade. Contudo, os bares gays eram excluídos para as periferias das cidades. Lá, as Drags começaram a ganhar seu espaço e ressurgiram das cinzas e essas “novas drags” começaram - em sua maioria - a fazer apresentações que remetiam ícones do cinema e da música da época.
Mas foi somente entre os anos 70 e 80 que os gays começaram a utilizar o termo, adicionando o Queen, que dali não saiu mais. A partir desse momento, as Drag Queens começaram a assumir a luta LGBTQ, sendo um dos maiores símbolos da causa. Com essa visibilidade, as Drags começaram a ganhar mais espaço na sociedade, mas antes que isso fosse consolidado o aumento do números de casos de HIV fez com que essa comunidade fosse renegada mais uma vez e obrigada a retornar aos clubes periféricos.
Já nos anos 90, Hollywood deu um grande pontapé na sociedade, fazendo com que a arte da "montação" fosse mais uma vez valorizada. “Priscilla, a rainha do deserto” levou a cultura das Drags para o público geral e as colocou novamente à frente da luta LGBTQ, ajudando a popularizar as paradas gays pelo mundo.
Durante esse período, o americano RuPaul cresceu de uma forma surpreendente como Drag Queen, iniciando sua carreira como modelo, cantora, personalidade pública e apresentadora de seu próprio reality show destinado somente à "arte da montação”, RuPaul’s Drag Race, que existe até hoje.
No Brasil, a história do cenário Drag nacional foi semelhante à internacional. No teatro e na televisão os homens eram vistos executando papéis femininos, depois evoluindo naturalmente para os shows em clubes ao redor do país. Já durante a ditadura, essa prática foi perdendo espaço juntamente com o movimento LGBTQ. Apesar disso, nos anos 90 as Drags renasceram e hoje ocupam um espaço grande, seja nos clubes e boates ou no cenário pop.
ESTILOS DE DRAGS
Para os que menos entendem, Drag Queens são homens que se vestem de mulher, abusando da maquiagem, do brilho e dos saltos altos. Mas nem todas são assim.
Existem diversos tipos de Drag Queens, porém, não existe uma categorização correta. Dessa forma, o mundo das Drags é muito aberto para você ser quem você quiser. Não existe um molde no qual você tem que se encaixar, muito menos limites para sua criatividade. Assim, a cada dia que passa podem ser criadas novas categorias.
Uma das classificações mais extensas e abrangentes, categoriza as Drags em 11 estilos. Incluindo uma parcela maior da comunidade, essa forma de classificar os tipos é muito utilizada nos Estados Unidos da América e vem se espalhando para o mundo inteiro.
As Faux são aquelas que nasceram mulheres biologicamente, ou seja, as mulheres que se vestem de mulheres. Porém, essas Drags visam , em sua maioria, se “dragnizar” de uma forma exagerada e bem colorida, uma vez que elas já são mulheres, querendo somente se transformar um personagem.
Existem também as que combinam características masculinas e femininas, não utilizando traços típicos de um gênero, tendendo a ser muito artísticas. Assim, as chamadas Androgyny ou Genderfuck se caracterizam pela sua ambiguidade de identidade de gênero e de identidade sexual.
Um dos estilos mais conhecidos são as Fish. Elas almejam se parecer ao máximo com uma mulher autêntica, sendo muito bem maquiadas, vestidas e com um acabamento surreal em seu visual. Normalmente essas Drags mais "mocinhas" levam a “montação" muito a sério, e às vezes diminuem os outros tipos de Drags por acha-las não muito femininas.
Inspiradas no movimento club kid que aconteceu principalmente em Nova Iorque nos anos 80 e 90, as Club utilizam de técnicas únicas de maquiagem, assim como de roupas ousadas e fashion para formar um personagem único, impressionando a todos com seu estilo peculiar.
Já as Goth, se inspiram no estilo gótico clássico e nos filmes de terror, tendo uma aparência dark e sombria. No closet desse tipo de Drag é difícil ver uma grande variedade de cores, sendo tudo praticamente entre o espectro do preto e do preto. A maioria das que acatam esse estilo fazem uma maquiagem com a pele bem branca, abusando das cores escuras, seja nos lábios, nos olhos ou em ambos.
Assim como em qualquer hobbie ou profissão, existem sempre aqueles que investem rios de dinheiro e são super competitivos. Essas são as Pageant. Pageant é a palavra em inglês que, quando traduzida para o português denomina os concursos de beleza. Logo, essas Drags gastam milhares em roupas, maquiagem, plásticas e jóias para estarem sempre impecáveis, já que são julgadas em todos os mínimos detalhes, uma vez que competem em concursos de beleza.
O tipo de Drag Queen que normalmente vem à mente dos mais leigos são as Camp. Essas tem uma estética mais voltada ao cômico, tendendo normalmente ao exagero, à sátira, ao humor negro e de baixo calão. Normalmente são brutalmente honestas, e insultam como ninguém, e até levam essa personagem à vida pessoal, classificando o Camp não só como uma forma de se montar, mas como um lifestyle.
As Camp possuem duas sub categorias - as High camp e as Low camp. As Low Camp são aquelas que, em sua maioria, se vestem de um jeito mais exagerado, carregando muito suas produções. Já em suas apresentações, não fazem questão alguma de serem educadas ou “mocinhas”. Já as High Camp podem ter um visual mais feminino. Em suas apresentações, as apelidadas Broadway Queens nem sempre são tão engraçadas, mas são bastante preocupadas com suas performances e aparência.
Para as que já começaram ou finalizaram a transição de sexo também existe uma categoria. As TransDrag são aquelas que apesar de já começarem a ter um visual feminino no seu dia a dia - deixando o cabelo crescer, tomando hormônios que resultam na afinação da voz e no menor crescimento de pelos pelo corpo, colocando silicone, preenchimento labial, e assim por diante - ainda se montam como Drag Queens.
As Tranimal, mais conhecidas como Terrorist Drags, são desconstruídas tanto na forma de se vestir quando de se maquiar. Elas misturam objetos, elementos do surrealismo, artes performáticas, punk rock, e questões sociais e raciais. Essas Drags são mais incomuns, uma vez que utilizam de um estilo mais agressivo, com perucas despenteadas e roupas exóticas, além de não precisarem necessariamente de se depilar ou esconder seus atributos masculinos, brincando com os gêneros.
Em toda comunidade tem aquela pessoa resiliente, que transita por todos os grupos. No mundo das Drags essas são chamadas de Fluid. Essas “damas” não tem um estilo definido para se montar, podendo um dia se vestir como uma Fish e no outro já virar uma Goth. Elas também utilizam de várias técnicas e estilos ao mesmo tempo para criar um personagem único. Tendem a ser muito versáteis e criativas, podendo performar de diversas maneiras, exibindo inúmeras aptidões.
Temos também as Activessle. Essas são uma rainha ou um grupo de rainhas que geralmente se montam para realizar uma função beneficente e/ou ativista em suas comunidades. Algumas performam com o intuito de arrecadar fundos para instituições de caridade, sejam elas relacionadas ou não à comunidade LGBTQI+.
Não podemos esquecer das "rainhas por um dia". Muitos não as consideram Drag Queens, mas é válido cita-las de qualquer jeito. Essas “moças" são aquelas que se montam por diversão por um dia e nada mais. São aqueles homens que se montam no carnaval, ou para uma festa a fantasia, mas que mesmo que só por uma noite, abraçam o personagem e arrasam na maquiagem e no look.
Por fim, temos os Drag Kings. Esses são caracterizadas por mulheres que se vestem como homens, mas são muito mais raras que as Drag Queens. Eles também possuem categorias, mas vamos focar somente nas nossas rainhas, ok?
Ser Drag é, antes de tudo sobre liberdade: liberdade de ser, criar e expressar, não importa em qual tipo você se encaixa, ou se você não se encaixa em nenhum, o importante é ser quem você quiser.
VISIBILIDADE
A visibilidade das Drags no mundo e no Brasil vem crescendo exponencialmente. Uma das percursoras do grupo nos holofotes foi RuPaul, que além de ser uma figura pública, atriz, cantora e criadora do reality show de Drag mais famoso do mundo, o anteriormente citado, RuPaul’s Drag Race.
No Brasil, temos a famosa cantora Pablo Vittar, que acumula milhões de plays e seguidores nas redes sociais, e também a youtuber Lorelay Fox, que ficou famosa por seu canal Para Tudo em que abre o jogo e desabafa sobre diferentes assuntos como o machismo, a homofobia e o preconceito.
Além dos famosos que atraem olhares para o grupo, as paradas gays também conseguem visibilidade ao movimento. Popularizadas pelo mundo inteiro, as chamadas prides, são palco para muitas Drags darem seu melhor e representarem a comunidade LGBT. A partir delas, muitas pessoas começaram a se interessar pela “arte da montação”. Um exemplo dessas pessoas é João Vitor, um jovem gay de 22 anos que ao ver as Drags na parada gay de São Paulo se interessou tanto pela arte que hoje se monta 2 vezes na semana.
LUTA LGBTQI+
Desde o final do século 20, as Drags vem ocupando um grande espaço na comunidade LGBT. Junto a essa inserção veio também o papel de representante das lutas do movimento. Um dos grandes motivos da atribuição desse cargo é a visibilidade que esse grupo tem, atraindo olhares de todos os que passam, seja por seu visual exagerado ou pela personalidade exaltada de algumas.
Além do visual e da personalidade, o movimento LGBT luta por igualdade, pelo fim do preconceito, e para a comunidade ter os mesmos direitos e receber os mesmos olhares que um heterossexual. Mas onde a Drag Queen se encaixa?
As Drags são tudo que o mundo heteronormativo atual condena. São homens, normalmente gays, que criam uma personalidade, às vezes muito afeminada, vestidos de mulher abusando do gliter, perucas e roupas espalhafatosas. Resumindo, são os primeiros a dar a cara a tapa.
Edinéia, uma lésbica de 30 anos, afirma que as Drags representam o orgulho da comunidade LGBT. Segundo ela as Drags mostram verdadeiramente o perfil do movimento, com muita alegria e coragem de ser quem são em frente a uma sociedade tão homofóbica.
Já Matheus, um gay de 20 anos, entende que as Drag Queens são as maiores portadoras da bandeira arco íris, mostrando a todos a presença, e perseverança do movimento pelo mundo.
Dom Pablo, uma ex Drag, defende com unhas e dentes o ato da “montação". Segundo ele é uma arte cara e que requere muita dedicação, são horas e horas se montando, preparando um look e montando um personagem, e isso, para ele, o faz admirar cada vez mais as rainhas que perseveram nessa arte.
A representatividade das Drags na luta LGBT é tanta que em novembro deste ano foi lançada uma série na Netflix chamada “Super Drags”. Nela, três amigos que se montam defendem o mundo gay de ameaças internas e externas.
Entretanto, apesar de lutar contra o preconceito, existe muita descriminação dentro do próprio mundo das Drag Queens. Seja ele praticado pelos mais experientes com os novatos, ou com as Faux ou TransDrags.
Barbara Bueno, uma Faux, bi, filha de duas mulheres, começou a se montar a pouco tempo, mas tinha muito receio do preconceito contra as mulheres que se montam. Entretanto, ela diz nunca ter sentido essa descriminação, agradecendo muito aos seus amigos, também Drag Queens, que a incentivaram a se montar.
Já Lorde Alef, uma Androgyny de muitos anos, afirma que devido ao seu estilo de montagem, às vezes ele não é muito compreendido pelas outras Drags. Performista, Lorde se monta há mais de 10 anos, e diz já ter visto de tudo no mundo das Drags e por isso prega o companheirismo, afirmando que a melhor forma de se ajudar a comunidade Drag é levantando umas as outras.
DRAG É QUESTÃO DE GÊNERO?
É importante frisar que ser Drag independe da identidade de gênero ou orientação sexual. A arte de ser Drag Queen ou King envolve a construção de um “personagem”, enquanto identidade de gênero diz respeito ao gênero com o qual a pessoa se reconhece, sendo ela cisgênero, fluido ou transgênero.
Mesmo que sempre associado com as Drags - mesmo sabendo-se que nem toda Drag Queen é gay e que nem todo Drag King é lésbica- orientação sexual é outro nicho. Seja ele hétero, homo ou bi, a arte de ser Drag é algo independente dessa classificação.
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